Alpes Literários

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Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Allen Ginsberg - Uivo (excerto)

Eis aqui Ginsberg a reivindicar o direito à liberdade em todas as suas formas – intelectuais, religiosas, sociais ou sexuais –, no afã de superar uma situação de subordinação a uma autoridade farisaica e subjugadora, instilando “ácido” sobre o lado mais puritano e conservador da América, por meio de sua elocução anticonformista e anticapitalista, em alucinante sucessão de reptos.

Com efeito, trata-se de um poema longo, exaustivo, verborrágico até, mas que se propõe a fazer uma crítica severa e mordaz do “American Way of Life” – decerto a mais autêntica e desafiadora diatribe jamais lançada pela “Beat Generation”! –, num vociferante caudal de tirar o fôlego, a impedir que se o adjetive como mero “efeito colateral” das drogas e do universo “outsider” em que se metera o autor – combinação que, como o próprio Ginsberg o assinala, acabou por abreviar a vida de muitos jovens daquela geração.

J.A.R. – H.C.

 

Allen Ginsberg

(1926-1997)

 

Howl (excerpt)

 

for Carl Solomon

 

I

 

I saw the best minds of my

generation destroyed by

madness, starving

hysterical naked,

dragging themselves through

the negro streets at dawn

looking for an angry fix,

angelheaded hipsters burning

for the ancient heavenly

connection to the starry

dynamo in the machinery

of the night,

who poverty and tatters and

hollow-eyed and high sat

up smoking in the

supernatural darkness

of cold-water flats floating

across the tops of cities

contemplating jazz,

who bared their brains to

Heaven under the El

and saw Mohammedan

angels staggering on

tenement roofs illuminated,

who passed through universities

with radiant cool eyes

hallucinating Arkansas and

Blake-light tragedy among

the scholars of war,

who were expelled from the

academies for crazy &

publishing obscene odes

on the windows of the skull,

who cowered in unshaven

rooms in underwear,

burning their Money in

wastebaskets and listening

to the Terror through the wall,

who got busted in their pubic

beards returning through

Laredo with a belt of

marijuana for New York,

who ate fire in paint hotels or

drank turpentine in Paradise

Alley, death, or purgatoried

their torsos night after night

with dreams, with drugs, with

waking nightmares, alcohol

and cock and endless balls [...]

 

Lucien Carr, Burroughs, Ginsberg

(New York City, 1953)

 

Uivo (excerto)

 

para Carl Solomon (1)

 

I

 

Eu vi os expoentes da minha

geração destruídos pela

loucura, morrendo de

fome, histéricos, nus,

arrastando-se pelas

ruas do bairro negro de madrugada em

busca de uma dose violenta de qualquer coisa,

“hipsters” (2) com cabeça de anjo ansiando

pelo antigo contato celestial

com o dínamo

estrelado da maquinaria

da noite,

que pobres, esfarrapados

e olheiras fundas,

viajaram fumando sentados

na sobrenatural escuridão dos miseráveis

apartamentos sem água quente, flutuando

sobre os tetos das cidades

contemplando jazz,

que desnudaram seus cérebros

ao céu sob o Elevado

e viram anjos maometanos

cambaleando iluminados

nos telhados das casas de cômodos,

que passaram por universidades

com olhos frios e radiantes

alucinando Arkansas e

tragédias à luz de William Blake entre

os estudiosos da guerra,

que foram expulsos das

universidades por serem loucos &

publicarem odes obscenas

nas janelas do crânio (3),

que se refugiaram em quartos de paredes

de pintura descascada em roupa de baixo

queimando seu dinheiro

em cestas de papel, escutando

o Terror através da parede,

que foram detidos em suas barbas

púbicas voltando por

Laredo (4) com um cinturão de

marijuana para Nova York,

que comeram fogo em hotéis mal-pintados ou

beberam terebentina em Paradise Alley (5),

morreram ou flagelaram

seus torsos noite após noite

com sonhos, com drogas, com

pesadelos na vigília, álcool

e caralhos e intermináveis orgias (6) [...]


Notas do Tradutor:
(GINSBERG, 1984, p. 189-190)

(1). Carl Solomon, a quem está dedicado Uivo, é um escritor “neodadaísta”, autor de Mishaps Perhaps. Ginsberg o conheceu no Instituto Psiquiátrico de Columbia, onde permaneceu internado durante 8 meses em 1948. O internamento foi uma forma de evitar sua prisão, por sugestão dos advogados da Universidade de Columbia, onde ele terminava sua graduação depois de uma carreira acadêmica das mais tumultuadas. Isto, como consequência de um desastrado incidente, quando Ginsberg foi flagrado num carro roubado, em companhia de Herbert Huncke e mais dois delinquentes que ele abrigava no seu apartamento do Harlem. O encontro de Ginsberg e Solomon é famoso: ambos, ao se verem, apresentaram-se como personagens de Dostoievski: “Quem é você?”, “Eu sou Michkine” (Ginsberg); “Eu sou Kirilov” (Solomon). Solomon havia morado na França e conhecia bem a literatura francesa moderna, o Dadaísmo, o Surrealismo e Artaud, sobre o qual havia feito um trabalho; contribuiu para familiarizar Ginsberg com essa vertente literária. Saindo do hospício, Solomon foi trabalhar como leitor para a Ace Books, ajudando na publicação do Junkie de Burroughs.

(2). Hipsters - expressão de gíria do circuito de jazz e drogas nos anos 40, designando o marginal rebelde e tomador de drogas. Depois, sua utilização ampliou-se em conexão com a difusão da Beat. Norman Mailer, em 1958, escreveu vários estudos sobre o “Hipster” (em Advertisement for Myself), romantizando-o, fazendo sua apologia como precursor de uma nova cultura e contrastando-o com o “Square”, o quadrado. Na época, “hipster” era quase sinônimo de Beat. Daí deriva seu diminutivo, “hippie”, corrente a partir dos anos 60.

(3). Odes obscenas nas janelas do crânio - é o episódio que provocou a suspensão (e quase expulsão) de Ginsberg da Universidade de Columbia em 1945. Com 19 anos, Ginsberg já era um rebelde provocador na vida acadêmica, visto com reservas por frequentar a vida boêmia e “hipster” de Nova York e ter-se tornado amigo de figuras com o William Burroughs, Jack Kerouac e Herbert Huncke. Sua faxineira recusava-se a arrumar seu alojamento na universidade; em represália, Ginsberg escreveu algumas frases com o dedo na poeira que recobria a janela: Fuck the Jews (ele mesmo era judeu) e a afirmação que o então reitor de Columbia não tinha culhões. A suspensão também se deveu a Ginsberg hospedar no seu alojamento a Jack Kerouac e Lucien Carr, que haviam sido expulsos de Columbia e estavam proibidos de pôr os pés lá.

(4). Laredo - no Texas, fronteira com o México, ponto de passação de drogas pela fronteira, algo assim como Corumbá ou Ponta Porã no caso brasileiro. Em fins dos anos 40, Burroughs teve uma fazenda no Texas (perto de Houston) onde plantava maconha.

(5). que comeram fogo em hotéis mal-pintados ou beberam terebentina - alusão ao suicídio de um jovem poeta da época, que realmente bebeu terebentina. Hotéis mal-pintados, no original paint hotels: havia uma lei municipal em Nova York pela qual todos os prédios tinham que ser pintados a cada dois anos. Evidentemente, os hotéis baratos e outros prédios pobres eram recobertos por uma pintura aplicada de qualquer jeito.

(6). álcool e caralhos e intermináveis orgias - no original, endless balls, sendo que “balls” é ambíguo e polissêmico, pois quer dizer bolas, culhões (relativo ao caralho da mesma frase), bailes, drogas e, em “slang”, festas orgiásticas.

Referências:

Em Inglês

GINSBERG, Allen. Howl (excerpt). In: __________. Howl and other poems. Introduction by William Carlos Williams. 25th print. San Francisco, CA: City Lights Books, jan. 1973. p. 9. (The pocket poets series; n. 4)

Em Português

GINSBERG, Allen. Uivo (excerto). In: __________. Uivo, kaddish e outros poemas: 1953-1960. Prefácio, seleção e tradução de Claudio Willer. Porto Alegre, RS: L&PM, 1984, p. 41-42.

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