Eis aqui Ginsberg a reivindicar o direito à liberdade em todas as suas formas – intelectuais, religiosas, sociais ou sexuais –, no afã de superar uma situação de subordinação a uma autoridade farisaica e subjugadora, instilando “ácido” sobre o lado mais puritano e conservador da América, por meio de sua elocução anticonformista e anticapitalista, em alucinante sucessão de reptos.
Com efeito, trata-se de um poema longo, exaustivo, verborrágico até, mas que se propõe a fazer uma crítica severa e mordaz do “American Way of Life” – decerto a mais autêntica e desafiadora diatribe jamais lançada pela “Beat Generation”! –, num vociferante caudal de tirar o fôlego, a impedir que se o adjetive como mero “efeito colateral” das drogas e do universo “outsider” em que se metera o autor – combinação que, como o próprio Ginsberg o assinala, acabou por abreviar a vida de muitos jovens daquela geração.
J.A.R. – H.C.
Allen Ginsberg
(1926-1997)
Howl (excerpt)
for Carl Solomon
I
I saw the best minds of my
generation destroyed by
madness, starving
hysterical naked,
dragging themselves through
the negro streets at dawn
looking for an angry fix,
angelheaded hipsters burning
for the ancient heavenly
connection to the starry
dynamo in the machinery
of the night,
who poverty and tatters and
hollow-eyed and high sat
up smoking in the
supernatural darkness
of cold-water flats floating
across the tops of cities
contemplating jazz,
who bared their brains to
Heaven under the El
and saw Mohammedan
angels staggering on
tenement roofs illuminated,
who passed through universities
with radiant cool eyes
hallucinating Arkansas and
Blake-light tragedy among
the scholars of war,
who were expelled from the
academies for crazy &
publishing obscene odes
on the windows of the skull,
who cowered in unshaven
rooms in underwear,
burning their Money in
wastebaskets and listening
to the Terror through the wall,
who got busted in their pubic
beards returning through
Laredo with a belt of
marijuana for New York,
who ate fire in paint hotels or
drank turpentine in Paradise
Alley, death, or purgatoried
their torsos night after night
with dreams, with drugs, with
waking nightmares, alcohol
and cock and endless balls [...]
Lucien Carr, Burroughs, Ginsberg
(New York City, 1953)
Uivo (excerto)
para Carl Solomon (1)
I
Eu vi os expoentes da minha
geração destruídos pela
loucura, morrendo de
fome, histéricos, nus,
arrastando-se pelas
ruas do bairro negro de madrugada em
busca de uma dose violenta de qualquer coisa,
“hipsters” (2) com cabeça de anjo ansiando
pelo antigo contato celestial
com o dínamo
estrelado da maquinaria
da noite,
que pobres, esfarrapados
e olheiras fundas,
viajaram fumando sentados
na sobrenatural escuridão dos miseráveis
apartamentos sem água quente, flutuando
sobre os tetos das cidades
contemplando jazz,
que desnudaram seus cérebros
ao céu sob o Elevado
e viram anjos maometanos
cambaleando iluminados
nos telhados das casas de cômodos,
que passaram por universidades
com olhos frios e radiantes
alucinando Arkansas e
tragédias à luz de William Blake entre
os estudiosos da guerra,
que foram expulsos das
universidades por serem loucos &
publicarem odes obscenas
nas janelas do crânio (3),
que se refugiaram em quartos de paredes
de pintura descascada em roupa de baixo
queimando seu dinheiro
em cestas de papel, escutando
o Terror através da parede,
que foram detidos em suas barbas
púbicas voltando por
Laredo (4) com um cinturão de
marijuana para Nova York,
que comeram fogo em hotéis mal-pintados ou
beberam terebentina em Paradise Alley (5),
morreram ou flagelaram
seus torsos noite após noite
com sonhos, com drogas, com
pesadelos na vigília, álcool
e caralhos e intermináveis orgias (6) [...]
Notas do Tradutor: (GINSBERG, 1984, p.
189-190)
(1). Carl Solomon, a quem está dedicado Uivo, é um escritor “neodadaísta”, autor de Mishaps Perhaps. Ginsberg o conheceu no Instituto Psiquiátrico de Columbia, onde permaneceu internado durante 8 meses em 1948. O internamento foi uma forma de evitar sua prisão, por sugestão dos advogados da Universidade de Columbia, onde ele terminava sua graduação depois de uma carreira acadêmica das mais tumultuadas. Isto, como consequência de um desastrado incidente, quando Ginsberg foi flagrado num carro roubado, em companhia de Herbert Huncke e mais dois delinquentes que ele abrigava no seu apartamento do Harlem. O encontro de Ginsberg e Solomon é famoso: ambos, ao se verem, apresentaram-se como personagens de Dostoievski: “Quem é você?”, “Eu sou Michkine” (Ginsberg); “Eu sou Kirilov” (Solomon). Solomon havia morado na França e conhecia bem a literatura francesa moderna, o Dadaísmo, o Surrealismo e Artaud, sobre o qual havia feito um trabalho; contribuiu para familiarizar Ginsberg com essa vertente literária. Saindo do hospício, Solomon foi trabalhar como leitor para a Ace Books, ajudando na publicação do Junkie de Burroughs.
(2). Hipsters - expressão de gíria do circuito de jazz e drogas nos anos 40, designando o marginal rebelde e tomador de drogas. Depois, sua utilização ampliou-se em conexão com a difusão da Beat. Norman Mailer, em 1958, escreveu vários estudos sobre o “Hipster” (em Advertisement for Myself), romantizando-o, fazendo sua apologia como precursor de uma nova cultura e contrastando-o com o “Square”, o quadrado. Na época, “hipster” era quase sinônimo de Beat. Daí deriva seu diminutivo, “hippie”, corrente a partir dos anos 60.
(3). Odes obscenas nas janelas do crânio - é o episódio que provocou a suspensão (e quase expulsão) de Ginsberg da Universidade de Columbia em 1945. Com 19 anos, Ginsberg já era um rebelde provocador na vida acadêmica, visto com reservas por frequentar a vida boêmia e “hipster” de Nova York e ter-se tornado amigo de figuras com o William Burroughs, Jack Kerouac e Herbert Huncke. Sua faxineira recusava-se a arrumar seu alojamento na universidade; em represália, Ginsberg escreveu algumas frases com o dedo na poeira que recobria a janela: Fuck the Jews (ele mesmo era judeu) e a afirmação que o então reitor de Columbia não tinha culhões. A suspensão também se deveu a Ginsberg hospedar no seu alojamento a Jack Kerouac e Lucien Carr, que haviam sido expulsos de Columbia e estavam proibidos de pôr os pés lá.
(4). Laredo - no Texas, fronteira com o México, ponto de passação de drogas pela fronteira, algo assim como Corumbá ou Ponta Porã no caso brasileiro. Em fins dos anos 40, Burroughs teve uma fazenda no Texas (perto de Houston) onde plantava maconha.
(5). que comeram fogo em hotéis mal-pintados ou beberam terebentina - alusão ao suicídio de um jovem poeta da época, que realmente bebeu terebentina. Hotéis mal-pintados, no original paint hotels: havia uma lei municipal em Nova York pela qual todos os prédios tinham que ser pintados a cada dois anos. Evidentemente, os hotéis baratos e outros prédios pobres eram recobertos por uma pintura aplicada de qualquer jeito.
(6). álcool e caralhos e intermináveis orgias - no original, endless balls, sendo que “balls” é ambíguo e polissêmico, pois quer dizer bolas, culhões (relativo ao caralho da mesma frase), bailes, drogas e, em “slang”, festas orgiásticas.
Referências:
Em Inglês
GINSBERG, Allen. Howl (excerpt). In: __________. Howl and other poems. Introduction by William Carlos Williams. 25th print. San Francisco, CA: City Lights Books, jan. 1973. p. 9. (The pocket poets series; n. 4)
Em Português
GINSBERG, Allen. Uivo (excerto). In:
__________. Uivo, kaddish e outros poemas: 1953-1960. Prefácio, seleção
e tradução de Claudio Willer. Porto Alegre, RS: L&PM, 1984, p. 41-42.
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