O poeta aprecia compulsar com frequência o dicionário, para de lá extrair palavras que quase nunca são ditas, sobretudo aquelas mais difíceis, como as que, na seção “Elucidário” desta postagem, apresento ao leitor os seus significados: por elas tem ele ternura – e muito carinho pelo dicionário, esse modesto e maciço erudito de capa azul.
Com as palavras, diz-nos Knopfli, aprende-se a granjear novos atributos às cosias deste mundo, afora o fato de que as palavras, a seu ver, teriam valor intrínseco, independentemente do significado que lhes conferimos. Assim, se para muitos, o dicionário – e as palavras nele contidas – é fonte de irritação, para o poeta mostra-se ele um recurso idôneo para alcançar a beleza e a ilustração.
J.A.R. – H.C.
Rui Knopfli
(1932-1997)
Amor das palavras
Amo todas as palavras, mesmo as mais difíceis
que só vêm no dicionário.
O dicionário ensinou-me mais um atributo
para o sabor dos teus lábios.
São doces como sericaia.
Faz-me pensar ainda se a tua beleza não será
comparável à das huris prometidas.
No dicionário aprendi que o meu verso é
por vezes fabordão e sesquipedal.
Nele existe o meu retrato moral (que
não confesso) e o de meus inimigos,
rasteiros como seramelas sepícolas
e intragáveis como hidragogos destinados à comua.
O dicionário, as palavras, irritam muita gente.
Eu gosto das palavras com ternura
e sinto carinho pelo dicionário,
maciço e baixo e pelo seu casaco, azul
desbotado, de modesto erudito.
Em: “O país dos outros” (1959)
Velhos amigos: diálogo silencioso
(Jozef Israëls: pintor holandês)
Elucidário:
Sericaia –
Doce típico da região portuguesa do Alentejo, provavelmente de origem indiana;
Huris – Segundo
o Alcorão, cada uma das virgens do paraíso que, como recompensa pela fidelidade
ao culto e pela prática de ações meritórias em vida, os muçulmanos
bem-aventurados poderão desposar;
Fabordão – Acompanhamento
em terceiras e sextas paralelas de uma melodia de cantochão; falso bordão;
Sesquipedal – Muito extenso; diz-se do verso ou da palavra que tem muitas sílabas;
Seramela – Salamandra;
Sepícola – Que
vive nas sebes;
Hidragogo – Designação
genérica dada aos agentes ou fármacos capazes de provocar uma evacuação líquida
(sudorípara, intestinal, urinária);
Comua – Latrina; vaso sanitário.
Referência:
KNOPFLI, Rui. Amor das palavras. In:
REIS-SÁ, Jorge; LAGE, Rui (Selecção, organização, introdução e notas). Poemas
portugueses: antologia da poesia portuguesa do séc. XIII ao séc. XXI.
Prefácio de Vasco Graça Moura. 1. ed. Porto, PT: Porto Editora, 2009. p. 1620.
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