Ao dar uma rearrumada no acervo de livros de que disponho em meu apartamento, deparei com um exemplar da obra em referência que já não sei quando e onde o adquiri, muito embora, certamente, há algumas décadas. Li-o em três dias e, julgando oportuno, sublinhei as passagens abaixo transcritas, uma vez que oferecem interessantes pensamentos e ‘insights’ do protagonista-narrador – Paul Bäumer – e de seus companheiros de luta, numa frente alemã em território francês, ao longo da Primeira Guerra Mundial.
“Nada de Novo no Front”, publicado originalmente em 1929, tem em seus capítulos finais – são 10 (dez) ao todo – a parte mais reflexiva da obra, quando Paul, pressentindo a morte próxima, entra num estado de ansiedade profunda em face de haver presenciado, aos poucos, a morte de cada um de seus colegas de companhia, a maior parte dos quais oriunda de uma mesma turma de certa instituição de ensino.
As descrições de cenas de combate são excruciantes, levando a crer que Remarque tenha-as presenciado de perto, pois muitas delas encerram estratégias que os combatentes costumam empregar em conflitos bélicos. No fim, contudo, somente a camaradagem do mesmo destino mortal a todos abraça.
Mesmo os laços íntimos com a família acabam por se romper, nesse jogo ilusório de brutalidade e de hipocrisia, travestido de patriotismo, glória, heroísmo, honra e dever para com a nação, ou que tais. Razão mesmo deve-se conceder a Wilfred Owen (1893-1918), poeta que tendo lutado por sua Inglaterra no mesmo conflito – e nele sucumbido aos 25 (vinte e cinco) anos –, logo vislumbrou as falácias de todos os discursos cívicos e ufanistas, redigindo um poema sobre a “velha mentira”: “Dulce et Decorum Est pro Patria Mori” (“Doce e honroso é morrer por seu país”).
Sem ser um livro que marque o leitor em definitivo sobre o tema dos conflitos bélicos, decerto o deixa mais permeável aos argumentos antiguerra. As pretensas razões para os embates distinguem-se das razões dos que, de fato, destinam-se aos campos de batalha: veja-se abaixo a solução jocosa sugerida pelo soldado Albert Kropp (em azul) – a semelhar-se ao circo dos combates reservados a gladiadores e guerreiros no Coliseu de Roma –, mas que bem se presta a apontar uma lança sobre o peito daquele que, pessoalmente, decide-se a dar início a uma guerra (outra coisa, bem diversa, é defender-se de um ataque armado!) – quando, então, haveria de expor a sua própria cabeça a prêmio, e não a de terceiros.
J.A.R. – H.C.
Eric M. Remarque
(1898-1970)
Este livro não
pretende ser um libelo nem uma confissão, e menos ainda uma aventura, pois a
morte não é uma aventura para aqueles que se deram face a face com ela. Apenas
procura mostrar o que foi uma geração de homens que, mesmo tendo escapado às
granadas, foram destruídos pela guerra. (REMARQUE, 1981, p. 5)
Recebemos dez semanas
de instrução militar; nesse período sofremos uma transformação mais radical do
que em dez anos de escola. Aprendemos que um botão bem polido é mais importante
do que quatro livros de Schopenhauer. No princípio, surpreendidos, depois
amargurados e, finalmente, indiferentes, reconhecemos que o espírito não era o
essencial, mas sim a escova de limpeza; não o pensamento, mas o “sistema”; não
a liberdade, mas o exercício. Foi com entusiasmo e boa vontade que nos tornamos
soldados; mas fizeram tudo para que perdêssemos a ambos. Depois de três
semanas, não era de todo incompreensível que um canteiro, cheio de galões,
tivesse mais autoridade sobre nós do que antigamente nossos pais, nossos
professores e todos os gênios da cultura, de Platão a Goethe. (REMARQUE, 1981,
p. 24)
Kropp, ao contrário,
é um pensador. No seu entender, uma declaração de guerra deve ser uma espécie
de festa do povo, com entradas e músicas, como nas touradas. Depois, os
ministros e os generais dos dois países deveriam entrar na arena de calção de
banho e, armados de cacetes, investirem uns sobre os outros. O último que
ficasse de pé seria o vencedor. Seria mais simples e melhor do que isto aqui,
onde quem luta não são os verdadeiros interessados. (REMARQUE, 1981, p. 39)
Para mim [Paul
Bäumer], a frente é um redemoinho sinistro. Quando se está em águas calmas,
ainda longe de seu centro, já se lhe sente a força de aspiração que nos
arrasta, lenta e implacavelmente, sem encontrar muita resistência. Mas a terra
e o ar fornecem-nos forças defensivas; principalmente a terra. Para nenhum
homem a terra é tão importante quanto para um soldado. Quando ele se comprime
contra ela demoradamente, com violência, quando nela enterra profundamente o
rosto e os membros, na angústia mortal do fogo, ela é seu único amigo, seu
irmão, sua mãe. Nela ele abafa o seu pavor e grita no seu silêncio e na sua
segurança; ela o acolhe e o libera para mais dez segundos de corrida e de vida,
e volta a abrigá-lo: às vezes, para sempre! (REMARQUE, 1981, p. 50)
Não somos mais a
juventude. Não queremos mais conquistar o mundo. Somos fugitivos. Fugimos de
nós mesmos e de nossas vidas. Tínhamos dezoito anos e estávamos começando a
amar a vida e o mundo e fomos obrigados a atirar neles e destruí-los. A
primeira bomba, a primeira granada, explodiu em nossos corações. Estamos
isolados dos que trabalham, da atividade, da ambição, do progresso. Não
acreditamos mais nessas coisas; só acreditamos na guerra. (REMARQUE, 1981, p.
76)
Estou agitado, mas
não é isso que desejo, pois não está certo. Quero sentir novamente aquele
deslumbramento calmo, aquela sensação poderosa e inexplicável que me envolvia
quando me voltava para os livros. O vento dos desejos que então se desprendia
das capas coloridas dos livros deve se apossar de mim novamente, para derreter
o pesado bloco morto de chumbo que se encontra em algum lugar dentro de mim, e
despertar de novo a impaciência do futuro, a alegria alada do mundo dos
pensamentos; deve devolver-me a perdida disposição de minha juventude. Aqui
estou, e espero. (REMARQUE, 1981, p. 140-141)
– Companheiro, não queria matá-lo. Se saltasse novamente aqui para dentro, não o faria, se você também fosse razoável. Mas, antes, você era apenas um pensamento, uma dessas abstrações que povoam meu cérebro e que exigem uma decisão... Foi essa abstração que apunhalei. Mas agora, pela primeira vez, vejo que é um ser humano como eu. Pensei nas suas granadas, na sua baioneta e no seu fuzil. Agora, vejo sua mulher, seu rosto e o que temos em comum. Perdoe-me, companheiro. Só vemos as coisas tarde demais. Por que não nos repetem sempre que vocês são também uns pobres-diabos como nós, que suas mães se inquietam como as nossas e que temos o mesmo medo da morte e morremos do mesmo modo, sentindo a mesma dor?... (REMARQUE, 1981, p. 179-180)
Como é inútil tudo
quanto já foi escrito, feito e pensado, quando não se conseguem evitar estas
coisas! Devem ser mentiras e insignificâncias, quando a cultura de milhares de
anos não conseguiu impedir que se derramassem esses rios de sangue e que
existam aos milhares estas prisões, onde se sofrem tantas dores. Só o hospital
mostra realmente o que é a guerra. (REMARQUE, 1981, p. 209)
Sou jovem, tenho
vinte anos, mas da vida conheço apenas o desespero, o medo, a morte e a mais
insana superficialidade que se estende sobre um abismo de sofrimento. Vejo como
os povos são insuflados uns contra os outros e como se matam em silêncio,
ignorantes, tolos, submissos e inocentes. Vejo que os cérebros mais
inteligentes do mundo inventam armas e palavras para que tudo isto se faça com
mais requintes e maior duração. E, como eu, todos os homens de minha idade,
tanto deste quanto do outro lado, no mundo inteiro, veem isto; toda a minha
geração sofre comigo. Que fariam nossos pais se um dia nós nos levantássemos e
nos apresentássemos a eles, para exigir que nos prestassem contas? Que esperam
de nós, se algum dia a guerra terminar? Durante todos esses anos, nossa única
preocupação foi matar. Nossa primeira profissão na vida. Nosso conhecimento da
vida limita-se à morte. Que se pode fazer, depois disto? Que será de nós?
(REMARQUE, 1981, p. 209-210)
Primeira Guerra
Mundial: Trincheira Alemã
(Felix Schwormstaedt:
ilustrador alemão)
Referência:
REMARQUE, Erich Maria. Nada de novo
no front. Tradução de Helen Rumjanek. São Paulo, SP: Abril Cultural, 1981.
232 p. (Série ‘Grandes Sucessos’)
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