Muito difícil é explicar a beleza insinuada pela poetisa portuguesa – algo primeva, a escandir os trilhos da irrealidade, fautora de uma dicção a desentranhar o inaudito, o inesperado e o contingente, enquanto flora e fauna ainda desafiam os atributos pelos quais amiúde as conhecemos –, mas, de qualquer modo, provedora de uma poesia em lufadas.
Tudo se passa como se fosse o princípio do mundo, em outros termos que não exatamente os do Gênesis: luz e sombras, árvores caminhantes – por que não, se há serpentes falantes?! –, mulheres – mas sem menção a homens –, tudo antes que o sexto dia se completasse, pois não há feras nesse belo paraíso (belo, mas aparentemente insípido, a julgar pela inflexão aposta por Chiote na quarta estrofe do poema).
J.A.R. – H.C.
Eduarda Chiote
(n. 1930)
Uma beleza dificílima
O silêncio
abre
o coração das sombras.
Por tal sossego, as árvores
caminham. Mas são as mulheres quem lhes assegura
a elegância do porte.
A harmonia vem do peso da luz
sob a cabeça. Das mãos em arco: os ramos seguram.
Altas são as folhas. Simples.
Lisa a copa.
Não há rumor na terra.
As feras não nasceram ainda. Apenas os peixes.
Fora de água
respiram.
Sim.
O mundo pode ser belo,
apesar de só.
Basta-lhe o fulgor no mais escalvado da noite
e meninos esbeltos e
gelados no sol.
E uma beleza dificílima. E um cauteloso
azul nas garças abatidas pelo céu.
E um primeiro espanto,
uma primeira alegria nas fendas
em direcção
ao pó.
Ciclope
(Odilon Redon: artista francês)
Referência:
CHIOTE, Eduarda. Uma beleza dificílima.
In: REIS-SÁ, Jorge; LAGE, Rui (Selecção, organização, introdução e notas). Poemas
portugueses: antologia da poesia portuguesa do séc. XIII ao séc. XXI.
Prefácio de Vasco Graça Moura. 1. ed. Porto, PT: Porto Editora, 2009. p. 1579.
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