Andresen toma o exemplo de Byron, vivendo num amplo palácio em Veneza (IT) – o Palazzo Mocenigo –, praticamente desabitado, como ilustração à sua tese de que, para se lançar de um modo exitoso à escrita, são necessários “solidões e desertos / e coisas que se veem como quem vê outra coisa” – e mais algum instrumental a dar contorno “atento” à cena.
Talvez o contexto fixado para a prática da escrita diga muito sobre as próprias estratégias por ela levadas a efeito em tal mister. Mas o fato é que não há como se concentrar num ambiente rumoroso ou ressonante, pois mesmo que as ideias se sucedam aos burburinhos, colocá-las em ordem no papel, de uma forma literariamente eficaz, configura conjuntura um tanto diversa.
J.A.R. – H.C.
Sophia de Mello B. Andresen
(1919-2004)
A escrita
No Palácio Mocenigo onde viveu sozinho
Lord Byron usava as grandes salas
Para ver a solidão espelho por espelho
E a beleza das portas quando ninguém passava
Escutava os rumores marinhos do silêncio
E o eco perdido de passos num corredor longínquo
Amava o liso brilhar do chão polido
E os tectos altos onde se enrolam as sombras
E embora se sentasse numa só cadeira
Gostava de olhar vazias as cadeiras
Sem dúvida ninguém precisa de tanto espaço vital
Mas a escrita exige solidões e desertos
E coisas que se veem como quem vê outra coisa
Podemos imaginá-lo sentado à sua mesa
Imaginar o alto pescoço espesso
A camisa aberta e branca
O branco do papel as aranhas da escrita
E a luz da vela – como em certos quadros –
Tornando tudo atento
Em: “Ilhas” (1989)
Quarto de Byron no Palácio Mocenigo:
Veneza – IT
(William Henry Lake Price: pintor inglês)
Referência:
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. A
escrita. In: __________. Coral e outros poemas. Seleção e apresentação
de Eucanaã Ferraz. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2018. p. 319.
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