Não se trata, exatamente, de uma guerra civil no sentido denotativo do termo, senão uma “guerra civil” metafórica, do poeta contra ele mesmo, pois que, segundo suas próprias palavras, não teria outro inimigo com quem porfiar. E o mais desconcertante é que a luta se trava contra uma parte que, para o falante, não lhe integra o ser, eis que insultada pela outra que de fato lhe sopra ao espírito: uma aliança absurda de criança e de adulto.
Os pensamentos, os sentimentos, as palavras e as obras incorporam o censor que lhe pede castigo. Exasperado pela loucura – ou mesmo por sua ausência –, de qualquer modo, não se dá por vencido: anela por outra vida, outra aventura, outro incerto destino. A esta hora, na outra margem da existência, terá logrado êxito em seu afã? (rs)
J.A.R. – H.C.
Miguel Torga
(1907-1995)
Guerra civil
É contra mim que luto.
Não tenho outro inimigo.
O que penso,
O que sinto,
O que digo
E o que faço,
É que pede castigo.
E desespera a lança no meu braço.
Absurda aliança
De criança
E de adulto,
O que sou é um insulto
Ao que não sou;
E combato esse vulto
Que à traição me invadiu e me ocupou.
Infeliz com loucura e sem loucura,
Peço à vida outra vida, outra aventura,
Outro incerto destino.
Não me dou por vencido,
Nem convencido,
E agrido em mim o homem e o menino.
Em: “Orfeu rebelde” (1958)
Retrato do Dr. Gachet
(Vincent van Gogh: pintor holandês)
Referência:
TORGA, Miguel. Guerra civil. In:
__________. Poesia completa. 1. ed. Lisboa, PT: Dom Quixote, 2000. p.
563.
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