O vate carioca (1921-2011) elabora aqui o seu discurso metapoético, algo construtivista, já que vislumbra a estrutura do poema como uma “casa de cômodos” a abrigar a esperança onde quer que se esteja – quer no motel quer no sindicato, seja na igreja seja em praça pública: de suas digressões, conclui que o poema é “arte e ação”, uma “rixa cara a cara em hora de decisão”.
A vida, para Uchôa, seria uma longa fila para se expressar o “ser em muitos atos”, e o poema aquilo que de mais essencial se decantou no espírito, a partir do que se passou na carne. Os poemas, enfim seriam extensos continentes de palavras “produtivas” – diga-se melhor, “não latifundiárias” – onde inventos são lavrados e adubados sem trégua.
J.A.R. – H.C.
Harmonia
(Remedios Varo: pintora espanhola)
Áreas do Poema
Neste momento o poema
é uma casa de cômodos,
um jeito de construir
a esperança no motel,
no sindicato, na igreja,
no rumor da praça pública.
Os que repensam o mundo em uma fila
sabem o que se exaure e cresce
dentro de cada cidadão anônimo
colhendo e repartindo com os minutos
sua oportunidade de viver.
Os movimentos de uma fila ensinam o homem
a reter e a deixar do seu diário
o que venta e o que passa em acontecimentos.
Viver é ser em muitos atos,
e a vida uma longa fila
que ensina constrangimentos
e o passo antes de andar.
Poema é um espaço que aprende
o que rola na carne e vira essência.
Árduo é secar o que no tanque a água insiste
em redimir: o que se lava e torce
nas roupas e linguagens e expressões
vertendo e trabalhando novas descobertas.
Poemas são continentes
sem latifúndios
nos extensos das palavras.
Em seus lotes verbais,
quadras e marcos impõem
a decisão de não ceder distâncias
onde se lavra e aduba inventos.
Música escoando
pelos degraus da palavra,
imagens que se independem,
verbo e auroras de invenção.
Tempo e universo
nos objetos diversos
de realidade constante.
Poema é arte e ação
uma rixa, uma cara a cara
em hora de decisão.
As Quatro Estações
(Jacek Yerka: pintor polonês)
Referência:
UCHÔA, Fernando Jorge. Áreas do poema. n:
__________. Flauta estridente e alvorada inquieta. São Paulo, SP:
Editora do Escritor, 1986. p. 37-38. (‘Coleção do Poeta’; vol. nº 67)
Nenhum comentário:
Postar um comentário