O poeta vai a um museu de cera e lá encontra uma representação de Cleópatra, que jaz em um ataúde de vidro, pondo-se então a elucubrar sobre as contingências pelas quais passou e os motivos que a teriam levado a suicidar-se, deixando-se picar, segundo as narrativas, por uma serpente.
O fato é que a consabida grandeza da rainha nada pôde fazer contra a morte (e o superveniente oblívio): todos são iguais e impotentes nesse momento, independentemente do passado – glorioso, neutro ou indigno – de cada um.
Há suficiente autoironia nos versos de Blok, quando põe nos lábios da afamada rainha egípcia palavras que vêm em seu próprio demérito: “Outrora eu suscitei paixões e lutas. / O que suscito agora? / Um poeta bêbado que chora / E o riso bêbado das prostitutas.”! (rs)
J.A.R. – H.C.
Aleksandr Blok
(1880-1921)
Клеопатра
Открыт паноптикум печальный
Один, другой и третий год.
Толпою пьяной и нахальной
Спешим… В гробу царица ждет.
Она лежит в гробу стеклянном,
И не мертва и не жива,
А люди шепчут неустанно
О ней бесстыдные слова.
Она раскинулась лениво –
Навек забыть, навек уснуть…
Змея легко, неторопливо
Ей жалит восковую грудь…
Я сам, позорный и продажный,
С кругами синими у глаз,
Пришел взглянуть на профиль важный,
На воск, открытый напоказ…
Тебя рассматривает каждый,
Но, если б гроб твой не был пуст,
Я услыхал бы не однажды
Надменный вздох истлевших уст:
“Кадите мне. Цветы рассыпьте.
Я в незапамятных веках
Была царицею в Египте.
Теперь – я воск. Я тлен. Я прах”. –
“Царица! Я пленен тобою!
Я был в Египте лишь рабом,
А ныне суждено судьбою
Мне быть поэтом и царем!
Ты видишь ли теперь из гроба,
Что Русь, как Рим, пьяна тобой?
Что я и Цезарь – будем оба
В веках равны перед судьбой?”
Замолк. Смотрю. Она не слышит.
Но грудь колышется едва
И за прозрачной тканью дышит…
И слышу тихие слова:
“Тогда я исторгала грозы.
Теперь исторгну жгучей всех
У пьяного поэта – слезы,
У пьяной проститутки – смех”.
(10 декабря 1907)
Morte de Cleópatra
(Guido Cagnacci: pintor italiano)
Cleópatra
O museu triste da rainha
Há um, dois, três anos já se abriu.
Bêbada e louca a turba ainda se apinha...
Ela espera no túmulo sombrio.
Jaz na sinistra caixa
De vidro, nem morta nem viva.
Sobre ela a multidão saliva
Palavras torpes em voz baixa.
Ela se estende preguiçosamente
No sono eterno a que se recolhera...
Lenta e suave, uma serpente
Morde o peito de cera.
Eu mesmo, fútil e perverso,
Com olheiras de anil,
Vim ver o lúgubre perfil
Na cera fria imerso.
Todos te contemplamos neste instante.
Se essa tumba não fosse uma mentira
Eu ouviria, outra vez, arrogante,
Teu lábio putrefato que suspira:
“Dai-me incenso. Esparzi-me flores.
Em eras anteriores
Fui rainha do Egito. Hoje sou só
Cera. Apodrecimento. Pó.”
“Rainha! O que há em ti que me fascina?
No Egito, como escravo, eu te adorei.
Agora a sorte me destina
A ser poeta e rei.
Da tua tumba não vês que já imperas
Na Rússia como em Roma? Não vês, mais,
Que eu e César, em séculos e eras,
Ante o destino seremos iguais?”
Emudeço. Contemplo. Ela não muda.
Só o peito pulsa, quase
Respirando entre a gaze,
E ouço uma fala muda:
“Outrora eu suscitei paixões e lutas.
O que suscito agora?
Um poeta bêbado que chora
E o riso bêbado das prostitutas.”
(10 de dezembro de 1907)
Referências:
Em Russo
БЛОК, Александр. Клеопатра. Disponível neste endereço. Acesso em: 15 abr. 2021.
Em Português
BLOK, Aleksandr. Cleópatra. Tradução de
Augusto de Campos. In: CAMPOS, Augusto de (Seleção e Tradução). Poesia da
recusa. São Paulo, SP: Perspectiva, 2006. p. 85-86. (‘Signos’, n. 42)
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