A poesia também serve para nos despertar às coisas mais correntes da existência – o chilrear dos pássaros, o gotejar de fontes adormecidas, a paixão de um par de namorados num banco de jardim, as “folhas mortas” ou almas que para longe partiram, e por aí vai –, mesmo a par de momentos que demarcam os mais significativos eventos da História – como guerras, cataclismos, revoluções.
Salvado chama a tais átimos – os quase “nadas do Homem” – por “pequenos eternos”, tais como aqueles instantes de enlevo amoroso, nos quais a expressão mais propícia é também a que lhe aflora mais trivial – “amo-te meu amor” –, porque nela está todo o sentido de uma vida com propósitos, trazendo alento ao coração afadigado pelas asperezas quotidianas.
O deleite de uma jornada – o atingimento de um clímax silencioso, no qual se esperam elásticas emoções – não é ler ou seguir um intrincado e detalhado mapa, capaz de tornar seguros os rostos de quem o tem por norte, mas explorar os locais desconhecidos e perder-se do mapa de vez em quando: o poeta segue para a floresta, onde “lê” o feroz convite a encerrar os seus “olhos rasos de espera!”.
J.A.R. – H.C.
António Salvado
(n. 1936)
Arte Poética
Não sei por que deixaria de cantar o chilrear dos
pássaros
nas ramadas.
Ou por que o meu coração se mostraria alheio ao gotejar
da fonte adormecida.
Haverá sempre pássaros a cantar nas ramarias
dispersas,
e o gotejar das fontes adormecidas será eterno como
os sonhos!
Um par de namorados está sentado num banco do
jardim.
Com mil guerras e cataclismos e mil revoluções,
haverá sempre um par de namorados no jardim
falando pelos olhos e amando-se pelas mãos.
As folhas mortas pela longa alameda sugerem almas
que
partiram para longe...
Não sei por que não deva falar das folhas mortas e
das almas
que para o longe partiram!
E se a maneira mais pura e simples de dizer à
bem-amada é
amo-te meu amor,
não sei por que deixaria de dizer à bem-amada
amo-te meu amor...
Falais de tudo esquecendo os pequenos eternos que
são
os nadas do Homem...
Se vos disser que o meu coração se quebra nos
precipícios
do dia a dia
e que vivo agarrado a uma única esperança e que
essa
esperança me constrói,
por entre os risos e os esgares dos vossos rostos
seguros
eu vejo a ordem indiscutível de encaminhar os meus
passos
para a floresta
e leio o feroz convite a encerrar os meus olhos
rasos
de espera!...
Em: “Tropos” (1969)
O Beijo
(Gustav Klimt: pintor austríaco)
Referência:
SALVADO, António. Arte poética. In:
__________. Obra I: 1955-1975. Coimbra, PT: A Mar Arte, 1997. p. 133.
Toda arte poética de António Salvado faz dos pequenos "nadas" aquela pequena magia que as crianças precisam para a sua vida. Só que em Salvado as crianças tomam a liberdade de serem mágicas: Crescem e entrelaçam-se, chamam o nome comum às coisas simples como amor, que é mais amor porque vêm de uma fonte que só precisa de estar em paz com a natureza incontida nas suas mãos e as bocas tímidas as chamam, chamam até serem o que lhes trás a paz e o sabor divino que se encarna no ser humano! ATC
ResponderExcluirPrezado António,
ExcluirMuito lhe agradeço pelo escólio sobre a obra do poeta António Salvado. Afinal, ninguém melhor do que um outro poeta para apreciar, com a amplitude de uma lírica mirada, o caudal – que já vai imenso – da arte em versos do autor desta “Arte Poética”.
Um abraço,
João A. Rodrigues
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