Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 16 de julho de 2021

António Salvado - Arte Poética

A poesia também serve para nos despertar às coisas mais correntes da existência – o chilrear dos pássaros, o gotejar de fontes adormecidas, a paixão de um par de namorados num banco de jardim, as “folhas mortas” ou almas que para longe partiram, e por aí vai –, mesmo a par de momentos que demarcam os mais significativos eventos da História – como guerras, cataclismos, revoluções.

Salvado chama a tais átimos – os quase “nadas do Homem” – por “pequenos eternos”, tais como aqueles instantes de enlevo amoroso, nos quais a expressão mais propícia é também a que lhe aflora mais trivial – “amo-te meu amor” –, porque nela está todo o sentido de uma vida com propósitos, trazendo alento ao coração afadigado pelas asperezas quotidianas.

O deleite de uma jornada – o atingimento de um clímax silencioso, no qual se esperam elásticas emoções – não é ler ou seguir um intrincado e detalhado mapa, capaz de tornar seguros os rostos de quem o tem por norte, mas explorar os locais desconhecidos e perder-se do mapa de vez em quando: o poeta segue para a floresta, onde “lê” o feroz convite a encerrar os seus “olhos rasos de espera!”.

J.A.R. – H.C.

 

António Salvado

(n. 1936)

 

Arte Poética

 

Não sei por que deixaria de cantar o chilrear dos pássaros

nas ramadas.

Ou por que o meu coração se mostraria alheio ao gotejar

da fonte adormecida.

Haverá sempre pássaros a cantar nas ramarias dispersas,

e o gotejar das fontes adormecidas será eterno como

os sonhos!

 

Um par de namorados está sentado num banco do jardim.

Com mil guerras e cataclismos e mil revoluções,

haverá sempre um par de namorados no jardim

falando pelos olhos e amando-se pelas mãos.

 

As folhas mortas pela longa alameda sugerem almas que

partiram para longe...

Não sei por que não deva falar das folhas mortas e das almas

que para o longe partiram!

E se a maneira mais pura e simples de dizer à bem-amada é

amo-te meu amor,

 

não sei por que deixaria de dizer à bem-amada

amo-te meu amor...

 

Falais de tudo esquecendo os pequenos eternos que são

os nadas do Homem...

 

Se vos disser que o meu coração se quebra nos precipícios

do dia a dia

e que vivo agarrado a uma única esperança e que essa

esperança me constrói,

por entre os risos e os esgares dos vossos rostos seguros

eu vejo a ordem indiscutível de encaminhar os meus passos

para a floresta

e leio o feroz convite a encerrar os meus olhos rasos

de espera!...

 

Em: “Tropos” (1969)

 

O Beijo

(Gustav Klimt: pintor austríaco)


Referência:

SALVADO, António. Arte poética. In: __________. Obra I: 1955-1975. Coimbra, PT: A Mar Arte, 1997. p. 133.

3 comentários:

  1. Toda arte poética de António Salvado faz dos pequenos "nadas" aquela pequena magia que as crianças precisam para a sua vida. Só que em Salvado as crianças tomam a liberdade de serem mágicas: Crescem e entrelaçam-se, chamam o nome comum às coisas simples como amor, que é mais amor porque vêm de uma fonte que só precisa de estar em paz com a natureza incontida nas suas mãos e as bocas tímidas as chamam, chamam até serem o que lhes trás a paz e o sabor divino que se encarna no ser humano! ATC

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Prezado António,
      Muito lhe agradeço pelo escólio sobre a obra do poeta António Salvado. Afinal, ninguém melhor do que um outro poeta para apreciar, com a amplitude de uma lírica mirada, o caudal – que já vai imenso – da arte em versos do autor desta “Arte Poética”.
      Um abraço,
      João A. Rodrigues

      Excluir
  2. https://www.facebook.com/groups/27298330406325024

    ResponderExcluir