Com propósitos nitidamente filosóficos, este poema do poeta paulistano é como um salto mental no vazio, vazio menos que formulado pelo autor do que navegado pelo intérprete, em águas por demais profundas para poder dilucidar a própria essência do poema (rs): mas o que importa? – um poema não se explica, já se disse –, melhor apreendê-lo em suas sugestões!
E o que se pode inferir das palavras do poeta – pretensa paráfrase – é que preconiza a busca de uma espécie de assombro ou epifania do ser, capaz de o “clarear” internamente, alimentando-o para o “devir e o seu querer caudaloso”, tal que, desse modo, tornem-se vazados os olhos do agourento “dragão da infâmia”, deixando-o desnorteando e à sua armada.
J.A.R. – H.C.
Apreciação de Manuel da Costa Pinto
(2006, p. 89-90)
Estudioso e tradutor
de autores da tradição libertina francesa (do setecentista Marquês de Sade ao
modernista Georges Bataille), Contador Borges cultiva estados de espírito
visionários que poderíamos associar ao inconformismo dos surrealistas e dos
escritores “malditos” em geral. Seu tom é exaltatório e conclama um “assombro”
que “encante nossa imperturbável inércia”. Há aqui um sentido cosmológico,
porém sem fundo religioso: trata-se, antes, de uma sacralidade do corpo, em que
os sentidos, a pele e a carne “são centelhas, nervos de um novo engenho”,
projetando no mundo exterior uma imaginação que visa nos libertar das cadeias
do corpo e das restrições racionais. Uma poesia que procura criar “o devir e
seu querer caudaloso” tende a cair em excessos retóricos – mas o reconhecimento
de que aquilo que se almeja é incomensurável também aponta para a direção
oposta, como nos versos que falam de um ardor “que não cabe num poema” e que,
portanto, se resigna às “luzes frias”. E nessa alternância entre “furor e
mistério” (para citar um título do francês René Char [1907-1988], outro autor
caro a Contador Borges) que se dá essa poética inebriada e sombria.
Principais Obras: Angelolatria
(1997), O Reino da Pele (2005), ambos pela Iluminuras.
Contador Borges
(n. 1954)
Que a voz esclareça o ser da aparência
Que a voz esclareça o ser da aparência
e tal movimento encante
nossa imperturbável inércia.
Que num rico espontâneo o juízo proclame
seu fim, ele que em meio ao deserto semeia
algo maior sem alcance,
e o que se chama assombro ou furor
de palavras atinja além das cinzas
o espaço inesperado
e estreite o encontro, não com a morte,
mas com o que faz parte da claridade interna
que alimenta o devir e seu querer caudaloso,
misterioso, o lance inevitável
a furar os olhos do agouro (agora ou nunca)
e jogar um balde no dragão
da infâmia e sua armada imensa à espreita
dos nossos gestos mais inócuos,
que mesmo os devaneios mortos são centelhas,
nervos de um novo engenho
que a matéria insere nas sementes
de outra série, fio, vereda, fazendo
do invisível a carne firme, viva, do alento.
Em: “O Reino da Pele” (2003)
Canção de Ninar do Tio Magritte
(Michael Cheval: pintor russo)
Referência:
BORGES, Contador. Que a voz esclareça o
ser da aparência. In: PINTO, Manuel da Costa (Edição, Seleção e Comentários).
Antologia comentada da poesia brasileira do século 21. São Paulo, SP:
Publifolha, 2006. p. 88.
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