Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 22 de julho de 2021

Contador Borges - Que a voz esclareça o ser da aparência

Com propósitos nitidamente filosóficos, este poema do poeta paulistano é como um salto mental no vazio, vazio menos que formulado pelo autor do que navegado pelo intérprete, em águas por demais profundas para poder dilucidar a própria essência do poema (rs): mas o que importa? – um poema não se explica, já se disse –, melhor apreendê-lo em suas sugestões!

E o que se pode inferir das palavras do poeta – pretensa paráfrase – é que preconiza a busca de uma espécie de assombro ou epifania do ser, capaz de o “clarear” internamente, alimentando-o para o “devir e o seu querer caudaloso”, tal que, desse modo, tornem-se vazados os olhos do agourento “dragão da infâmia”, deixando-o desnorteando e à sua armada.

J.A.R. – H.C.

 

Apreciação de Manuel da Costa Pinto



(2006, p. 89-90)

 

Estudioso e tradutor de autores da tradição libertina francesa (do setecentista Marquês de Sade ao modernista Georges Bataille), Contador Borges cultiva estados de espírito visionários que poderíamos associar ao inconformismo dos surrealistas e dos escritores “malditos” em geral. Seu tom é exaltatório e conclama um “assombro” que “encante nossa imperturbável inércia”. Há aqui um sentido cosmológico, porém sem fundo religioso: trata-se, antes, de uma sacralidade do corpo, em que os sentidos, a pele e a carne “são centelhas, nervos de um novo engenho”, projetando no mundo exterior uma imaginação que visa nos libertar das cadeias do corpo e das restrições racionais. Uma poesia que procura criar “o devir e seu querer caudaloso” tende a cair em excessos retóricos – mas o reconhecimento de que aquilo que se almeja é incomensurável também aponta para a direção oposta, como nos versos que falam de um ardor “que não cabe num poema” e que, portanto, se resigna às “luzes frias”. E nessa alternância entre “furor e mistério” (para citar um título do francês René Char [1907-1988], outro autor caro a Contador Borges) que se dá essa poética inebriada e sombria.

Principais Obras: Angelolatria (1997), O Reino da Pele (2005), ambos pela Iluminuras.

 

Contador Borges

(n. 1954)

 

Que a voz esclareça o ser da aparência

 

Que a voz esclareça o ser da aparência

e tal movimento encante

nossa imperturbável inércia.

Que num rico espontâneo o juízo proclame

seu fim, ele que em meio ao deserto semeia

algo maior sem alcance,

e o que se chama assombro ou furor

de palavras atinja além das cinzas

o espaço inesperado

e estreite o encontro, não com a morte,

mas com o que faz parte da claridade interna

que alimenta o devir e seu querer caudaloso,

misterioso, o lance inevitável

a furar os olhos do agouro (agora ou nunca)

e jogar um balde no dragão

da infâmia e sua armada imensa à espreita

dos nossos gestos mais inócuos,

que mesmo os devaneios mortos são centelhas,

nervos de um novo engenho

que a matéria insere nas sementes

de outra série, fio, vereda, fazendo

do invisível a carne firme, viva, do alento.

 

Em: “O Reino da Pele” (2003)

 

Canção de Ninar do Tio Magritte

(Michael Cheval: pintor russo)


Referência:

BORGES, Contador. Que a voz esclareça o ser da aparência. In: PINTO, Manuel da Costa (Edição, Seleção e Comentários). Antologia comentada da poesia brasileira do século 21. São Paulo, SP: Publifolha, 2006. p. 88.

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