A voz lírica intercala-se neste poema de Greggio, primeiramente a própria poesia em discurso direto, depois a palavra de um terceiro que a espreita, seguindo-lhe o tema serpentário, onde, por fim, os olhos do ofídio e do homem incidem numa sinopse de equivalência ôntica, à luz da qual supera-se o modorrento tédio vespertino, transigindo o sonho ao homem.
Às pernas lassas e à pele insensível sobrevém o frêmito suscitado pelo enredar da serpente, um estímulo não letal – pois que figurado, não exatamente vero –, mas que coloca o receptor em estado de suspense, apreensão e estremecimento: a poesia teria o condão de levantar as âncoras do batel, para fazê-lo vibrar nas águas revoltas e fortuitas do inaudito.
J.A.R. – H.C.
Bruno Greggio
(n. 1980)
Lírico
(O Recurso do Poeta)
Eu, essa serpente
que o poeta livra na sala
enquanto os homens, insuspeitos,
digerem a vida entre o sono e a distração.
Ela avança
avança por entre pernas lassas
por entre o tédio da tarde,
como uma linha viva,
como um longo poema inaudito
que os envolve
sem pressa
sobre a pele
insensível.
E quando o sono trepida,
ela sibila e dança,
e o homem, envolvido,
vê seus olhos nos olhos da serpente
e os olhos da serpente
não são mais os olhos da serpente;
nos olhos da serpente ele vê
o eu e vê a si:
não mais o sono sem cor da tarde,
pois agora o homem
o homem sonha.
Homem mordido por uma serpente
(Odd Nerdrum: pintor norueguês)
Referência:
GREGGIO, Bruno. Lírico (O recurso do
poeta). In: __________. O recurso do poeta: e outros objetos com
palavras. 1. ed. Belo Horizonte, MG: Ed. do Autor, 2021. p. 24-25.
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