Um belo e elegíaco manifesto do poeta à sua amada, antes que se afastem desta vida quaisquer vestígios seus, desvanecidos pela fragilidade da memória e pelo corrosivo efeito do tempo: muito se parece o teor deste poema de Schmidt ao soneto “A Carolina”, por meio do qual o escritor Machado de Assis se despede de sua companheira de longa data.
Difícil é aceitar a partida do(a) companheiro(a) de vida mais afim – amante, confidente e melhor amigo(a): atenuar a dor de uma perda nem sempre resulta natural ou inexorável, pois que o fato nos impacta física, emocional, cognitiva, social e espiritualmente. Nada melhor, portanto, que homenagear o(a) finado(a) parceiro(a) com um poema a recordar-lhe os atributos e o seu legado – como o faz Schmidt.
J.A.R. – H.C.
Augusto Frederico Schmidt
(1906-1965)
Poema
Antes do esquecimento, antes que o tempo sufoque as
últimas resistências da lembrança,
Antes que o meu ser acompanhe o teu ser na viagem
para
o eterno silêncio.
Antes que a mão que escreve estas linhas
Seja imobilizada pelo mesmo frio que matou tuas
mãos
maravilhosas,
Antes que a minha cabeça e o meu coração
Se debrucem sobre o sono sem termo que guarda.
Aceita, ó amada, que te recorde ainda um instante.
Que eu procure fixar a tua longínqua expressão
Nestes pobres versos frágeis, que não resistirão ao
tumulto
do tempo tão adverso;
Deixa que eu console a minha ingênua esperança
De que a tua imagem fará animar estas linhas
Da chama da tua graça desaparecida!
Ó flor, ó rosa tímida, de que o frio secou as
débeis pétalas.
Deixa, antes do esquecimento, que eu reveja o teu
sorriso,
O teu sorriso de outono e de lágrimas;
Deixa que eu procure fazer vibrar, no indiferente
silêncio,
A música da tua voz, da tua voz de segredo.
De vento noturno nos distantes jardins.
Da tua voz de medo e de impossível carinho;
Deixa que eu faça brilhar ao Sol deste dia os teus
pobres
cabelos escondidos,
Com a mesma vida que os animava, que os iluminava
outrora!
Deixa que eu procure evocar os teus gestos, o teu
ritmo
inconfundível,
A música misteriosa dos teus movimentos,
Ó flor tão breve aberta e desfolhada!
Deixa que eu tente fazer sorrir o teu sorriso,
E viver ainda o teu olhar, um momento,
Um momento antes do grande esquecimento.
Antes do derradeiro esquecimento!
Em: “Estrela Solitária” (1940)
Um beijo de boa-noite
(Jeff Rowland: artista inglês)
Referência:
SCHMIDT, Augusto Frederico. Poema. In:
COUTINHO, Frederico dos Reys (Seleção, Prefácio e Notas). As mais belas
poesias brasileiras de amor. 5. ed. Rio de Janeiro, RJ: Casa Editora Vecchi
Ltda., 1956. p. 218-219.
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