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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 3 de maio de 2021

Friedrich Nietzsche - Belo e Feio

A incursão acerca do belo e do feio, elaborada pelo filósofo alemão, expõe ao olhar o caráter antropomórfico do que entendemos por tais conceitos, presos à mais instintual subjetividade, pois que “o belo em si” não seria mais que uma miragem ou um ludíbrio, pois se trata de mero espelhamento daquilo que tomamos por belo ou perfeito: “uma vaidade da espécie”.

A contrário senso, feio seria o que degenera, que deixa de manifestar a potência humana. E se, como o afirma Nietzsche, a beleza é falsa e a verdade feia – porque oposta radicalmente ao belo e ao bem –, atribuímos à arte o encargo de nos aliviar da morte pela verdade. À vista de tais asserções, detemo-nos aqui, diante da incompreensão de Ariadne!

J.A.R. – H.C.

 

Friedrich Nietzsche

(1844-1900)

 

Incursões de um Extemporâneo nº 19

 

Belo e feio. – Nada é mais condicionado, digamos mais limitado, do que o nosso sentimento do belo. Quem quisesse pensar sobre ele separado do prazer do ser humano com o ser humano logo verá o chão ceder sob os pés. O “belo em si” é uma mera expressão, não é sequer um conceito. No belo, o ser humano se coloca como medida da perfeição; em casos seletos, adora nele a si mesmo. Uma espécie não pode senão dizer “Sim” a si mesma desse modo. Seu instinto mais profundo, o da autopreservação e autoexpansão, ainda se manifesta em tais sublimidades. O ser humano acredita que o mundo está repleto de beleza – ele esquece de si mesmo como causa dela. Somente ele dotou o mundo de beleza, oh, de uma beleza muito humana, demasiado humana... No fundo, o ser humano se espelha nas coisas, acha belo tudo o que lhe devolve a sua imagem: o juízo “belo” é sua vaidade de espécie... Pois o cético pode ouvir uma leve suspeita lhe sussurrar esta pergunta: o mundo realmente se tomou belo pelo fato de o ser humano tomá-lo por belo? Ele o humanizou: isso é tudo. Mas nada, absolutamente nada nos garante que justamente o ser humano constitua o modelo do belo. Quem sabe como ele se sairia aos olhos de um mais elevado juiz do gosto? Talvez ousado? Talvez até divertido? Talvez um pouco arbitrário?... “Ó divino Dionísio, por que me puxas as orelhas?”, perguntou Ariadne ao seu filosófico amante, num daqueles célebres diálogos em Naxos. “Acho um certo humor nas tuas orelhas, Ariadne: por que não são elas ainda mais compridas?” (*).

 

Dora Maar com o gato

(Pablo Picasso: pintor espanhol)


Nota do Tradutor:

(*) Na mitologia grega, Ariadne é conquistada por Dionísio na ilha de Naxos, onde Teseu a havia abandonado. Sobre as “orelhas compridas” como sinal de pouca inteligência, ver Ecce homo, final da seção 2. Outra alusão a um diálogo entre Dionísio e Ariadne se acha em Além do bem e do mal, final da seção 295. Os “célebres diálogos” a que Nietzsche se refere teriam sido escritos – na verdade, apenas planejados – por ele mesmo, como se depreende de um trecho dos “fragmentos póstumos” (outono de 1887, vol. 12 da KSA de Colli e Montinari, 9 [117]).

Referência:

NIETZSHE, Friedrich. Belo e feio. In: __________. Crepúsculo dos deuses. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. 1. reimp. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2006. p. 74.

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