Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 26 de maio de 2021

Guilhermino Cesar - Muito antes da manhã

Numa viagem, qualificável como psicodélica, pelo mundo afora, o falante discursa sobre o fluir das horas ou dos dias do poeta, “animal astuto” que se dedica a ocultar no espaço “a ignorância de si mesmo”, imerso que está num vórtice de “bugigangas” – a sugerir trânsito por alguma das tantas feiras repletas de apetrechos chineses.

O poeta desperta no leitor a sensação de que empreende glosa ao que assaz sucede em excursões de turismo: em poucos dias ou semanas, as companhias do setor dispõem-se a levar o visitante ao maior número possível de locais, num propósito meramente panorâmico, mas jamais cultural – como seria no caso em que se avaliassem e interpretassem suficientemente bem as realidades com as quais estes entram em contato. Assim, a ignorância da realidade circundante quase se assemelha com a ignorância de si mesmo.

J.A.R. – H.C.

 

Guilhermino Cesar

(1908-1993)

 

Muito antes da manhã

 

Muito antes da manhã, o poeta,

animal astuto,

pula da placenta para ver o mundo.

As abelhas lhe oferecem

prazeres hindus no abdômen de uma

rosa. O poeta se maravilha.

Depois, no leito de cimento, um cavalo no cio

Esmaga a distância, muito naturalmente,

com as patas. O poeta quase desmaia

de espanto.

E grita: – Onde os pró-anjos?

Mas como não existem pró-anjos, em seu auxílio

salta a cozinheira ostrogoda,

toda besuntada de óleo de baleia.

O poeta, coitado, foge para Pequim,

mas no caminho encontra o absinto

sob a forma ogival de uma polaca

vesga.

Ora bem. Toma o primeiro jato

para a Tasmânia – dizem-na tranquila.

Ali desembarca, cheio de bugigangas,

num avião de plástico.

 

Animal astuto, o poeta.

Oculta no espaço

a ignorância de si mesmo.

 

Cavalo, cachimbo e flor vermelha

(Joan Miró: pintor espanhol)


Referência:

CESAR, Guilhermino. Muito antes da manhã. In: __________. Sistema do imperfeito & Outros poemas. Porto Alegre, RS: Globo, 1977. p. 129.

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