Numa viagem, qualificável como psicodélica, pelo mundo afora, o falante discursa sobre o fluir das horas ou dos dias do poeta, “animal astuto” que se dedica a ocultar no espaço “a ignorância de si mesmo”, imerso que está num vórtice de “bugigangas” – a sugerir trânsito por alguma das tantas feiras repletas de apetrechos chineses.
O poeta desperta no leitor a sensação de que empreende glosa ao que assaz sucede em excursões de turismo: em poucos dias ou semanas, as companhias do setor dispõem-se a levar o visitante ao maior número possível de locais, num propósito meramente panorâmico, mas jamais cultural – como seria no caso em que se avaliassem e interpretassem suficientemente bem as realidades com as quais estes entram em contato. Assim, a ignorância da realidade circundante quase se assemelha com a ignorância de si mesmo.
J.A.R. – H.C.
Guilhermino Cesar
(1908-1993)
Muito antes da manhã
Muito antes da manhã, o poeta,
animal astuto,
pula da placenta para ver o mundo.
As abelhas lhe oferecem
prazeres hindus no abdômen de uma
rosa. O poeta se maravilha.
Depois, no leito de cimento, um cavalo no cio
Esmaga a distância, muito naturalmente,
com as patas. O poeta quase desmaia
de espanto.
E grita: – Onde os pró-anjos?
Mas como não existem pró-anjos, em seu auxílio
salta a cozinheira ostrogoda,
toda besuntada de óleo de baleia.
O poeta, coitado, foge para Pequim,
mas no caminho encontra o absinto
sob a forma ogival de uma polaca
vesga.
Ora bem. Toma o primeiro jato
para a Tasmânia – dizem-na tranquila.
Ali desembarca, cheio de bugigangas,
num avião de plástico.
Animal astuto, o poeta.
Oculta no espaço
a ignorância de si mesmo.
Cavalo, cachimbo e flor vermelha
(Joan Miró: pintor espanhol)
Referência:
CESAR, Guilhermino. Muito antes da
manhã. In: __________. Sistema do imperfeito & Outros poemas. Porto
Alegre, RS: Globo, 1977. p. 129.
Nenhum comentário:
Postar um comentário