Situado na seção “Fragmentos de um discurso vertiginoso” da obra em referência, estes excertos selecionados por Moriconi retratam bem o engenho de Hilst em arregimentar palavras que denotem o sentido de lascívia, sem descambar para o pornográfico, expressões das quais se deduz que experimenta o sexo sem se deixar aguilhoar ou explorar como uma “lacaia”.
Sob um estado de carência na satisfação de um desejo incontrolável, a voz lírica move-se a situações-limite, como à beira de “penhascos”, para “ganir diante do Nada”. Mesmo a Deus a sua não submissão decorre de um estado de espírito permeado pelo pudor das loucuras voluptuosas em que envolta, deixando de ser o Eterno, por conseguinte, objeto de sua procura: ao transcendente, prefere usufruir as primícias terrenas da carne, no meio de um jardim que fica “bem aqui ao lado”!
J.A.R. – H.C.
Hilda Hilst
(1930-2004)
Do Desejo
(Trechos)
I
Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.
[...]
IV
Se eu disser que vi um pássaro
Sobre o teu sexo, deverias crer?
E se não for verdade, em nada mudará o Universo.
Se eu disser que o desejo é Eternidade
Porque o instante arde interminável
Deverias crer? E se não for verdade
Tantos o disseram que talvez possa ser.
No desejo nos vêm sofomanias, adornos
impudência, pejo. E agora digo que há um pássaro
Voando sobre o Tejo. Por que não posso
Pontilhar de inocência e poesia
Ossos, sangue, carne, o agora
E tudo isso em nós que se fará disforme?
V
Existe a noite, e existe o breu.
Noite é o velado coração de Deus
Esse que por pudor não mais procuro.
Breu é quando tu te afastas ou dizes
Que viajas, e um sol de gelo
Petrifica-me a cara e desobriga-me
De fidelidade e de conjura. O desejo
Este da carne, a mim não me faz medo.
Assim como me veio, também não me avassala.
Sabes por quê? Lutei com Aquele.
E dele também não fui lacaia.
O desejo latente
(Artush Voskanyan: artista armênio)
Referência:
HILST, Hilda. Do desejo (trechos). In: MORICONI,
Ítalo (Organização, Introdução e Referências Bibliográficas). Os cem
melhores poemas brasileiros do século. Rio de Janeiro, RJ: Objetiva, 2001. p.
289-290.
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