Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 14 de maio de 2021

Hilda Hilst - Do Desejo (Trechos)

Situado na seção “Fragmentos de um discurso vertiginoso” da obra em referência, estes excertos selecionados por Moriconi retratam bem o engenho de Hilst em arregimentar palavras que denotem o sentido de lascívia, sem descambar para o pornográfico, expressões das quais se deduz que experimenta o sexo sem se deixar aguilhoar ou explorar como uma “lacaia”.

Sob um estado de carência na satisfação de um desejo incontrolável, a voz lírica move-se a situações-limite, como à beira de “penhascos”, para “ganir diante do Nada”. Mesmo a Deus a sua não submissão decorre de um estado de espírito permeado pelo pudor das loucuras voluptuosas em que envolta, deixando de ser o Eterno, por conseguinte, objeto de sua procura: ao transcendente, prefere usufruir as primícias terrenas da carne, no meio de um jardim que fica “bem aqui ao lado”!

J.A.R. – H.C.

 

Hilda Hilst

(1930-2004)

 

Do Desejo

(Trechos)

 

I

 

Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.

Antes, o cotidiano era um pensar alturas

Buscando Aquele Outro decantado

Surdo à minha humana ladradura.

Visgo e suor, pois nunca se faziam.

Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo

Tomas-me o corpo. E que descanso me dás

Depois das lidas. Sonhei penhascos

Quando havia o jardim aqui ao lado.

Pensei subidas onde não havia rastros.

Extasiada, fodo contigo

Ao invés de ganir diante do Nada.

 

[...]

 

IV

 

Se eu disser que vi um pássaro

Sobre o teu sexo, deverias crer?

E se não for verdade, em nada mudará o Universo.

Se eu disser que o desejo é Eternidade

Porque o instante arde interminável

Deverias crer? E se não for verdade

Tantos o disseram que talvez possa ser.

No desejo nos vêm sofomanias, adornos

impudência, pejo. E agora digo que há um pássaro

Voando sobre o Tejo. Por que não posso

Pontilhar de inocência e poesia

Ossos, sangue, carne, o agora

E tudo isso em nós que se fará disforme?

 

V

 

Existe a noite, e existe o breu.

Noite é o velado coração de Deus

Esse que por pudor não mais procuro.

Breu é quando tu te afastas ou dizes

Que viajas, e um sol de gelo

Petrifica-me a cara e desobriga-me

De fidelidade e de conjura. O desejo

Este da carne, a mim não me faz medo.

Assim como me veio, também não me avassala.

Sabes por quê? Lutei com Aquele.

E dele também não fui lacaia.

 

O desejo latente

(Artush Voskanyan: artista armênio)


Referência:

HILST, Hilda. Do desejo (trechos). In: MORICONI, Ítalo (Organização, Introdução e Referências Bibliográficas). Os cem melhores poemas brasileiros do século. Rio de Janeiro, RJ: Objetiva, 2001. p. 289-290.


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