Ao conceber um neologismo certamente reformulado dos verbetes “latifúndio” e “minifúndio”, com os seus radicais “latus” e “minoris” alterados para um hipotético “nihil” ou “nada”, o poeta desvela o estado ruinoso legado ao interior do país, depois que levas de trabalhadores rurais, pobres e sem-terra, migraram para os grandes centros urbanos.
A pintura cromatizada por Barros nos surge carregada de imagens em degradação, decalcadas num cenário inóspito onde o tempo parece não manar: o meio ambiente reduz-se a um “trastal”, material orgânico a submeter inclusive as palavras, a própria linguagem, envolta nessa indefectível dialética metabólica.
J.A.R. – H.C.
Manoel de Barros
(1916-2014)
O Guardador de Águas
V
Eles enverdam jia nas auroras.
São viventes de ermo. Sujeitos
Que magnificam moscas – e que oram
Devante uma procissão de formigas…
São vezeiros de brenhas e gravanhas.
São donos de nadifúndios.
(Nadifúndio é lugar em que nadas
Lugar em que osso de ovo
E em que latas com vermes emprenhados na boca.
Porém.
O nada destes nadifúndios não alude ao infinito
menor
de ninguém.
Nem ao Néant de Sartre.
E nem mesmo ao que dizem os dicionários: coisa
que
não existe.
O nada destes nadifúndios existe e se escreve com
letra
minúscula.)
Se trata de um trastal.
Aqui pardais descascam larvas.
Vê-se um relógio com o tempo enferrujado dentro.
E uma concha com olho de osso que chora.
Aqui, o luar desova…
Insetos umedecem couros
E sapos batem palmas compridas…
Aqui, as palavras se esgarçam de lodo.
Título não identificado
(Yves Tanguy: pintor francês)
Referência:
BARROS, Manoel. O guardador de águas:
seção V. In: __________. O guardador de águas. 1. ed. Rio de Janeiro,
RJ: Alfaguara, 2017. p. 19.
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