Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 23 de maio de 2021

Manoel de Barros - O Guardador de Águas (Seção V)

Ao conceber um neologismo certamente reformulado dos verbetes “latifúndio” e “minifúndio”, com os seus radicais “latus” e “minoris” alterados para um hipotético “nihil” ou “nada”, o poeta desvela o estado ruinoso legado ao interior do país, depois que levas de trabalhadores rurais, pobres e sem-terra, migraram para os grandes centros urbanos.

A pintura cromatizada por Barros nos surge carregada de imagens em degradação, decalcadas num cenário inóspito onde o tempo parece não manar: o meio ambiente reduz-se a um “trastal”, material orgânico a submeter inclusive as palavras, a própria linguagem, envolta nessa indefectível dialética metabólica.

J.A.R. – H.C.

 

Manoel de Barros

(1916-2014)

 

O Guardador de Águas

 

V

 

Eles enverdam jia nas auroras.

São viventes de ermo. Sujeitos

Que magnificam moscas – e que oram

Devante uma procissão de formigas…

São vezeiros de brenhas e gravanhas.

São donos de nadifúndios.

(Nadifúndio é lugar em que nadas

Lugar em que osso de ovo

E em que latas com vermes emprenhados na boca.

Porém.

O nada destes nadifúndios não alude ao infinito menor

de ninguém.

Nem ao Néant de Sartre.

E nem mesmo ao que dizem os dicionários: coisa que

não existe.

O nada destes nadifúndios existe e se escreve com letra

minúscula.)

Se trata de um trastal.

Aqui pardais descascam larvas.

Vê-se um relógio com o tempo enferrujado dentro.

E uma concha com olho de osso que chora.

Aqui, o luar desova…

Insetos umedecem couros

E sapos batem palmas compridas…

Aqui, as palavras se esgarçam de lodo.

 

Título não identificado

(Yves Tanguy: pintor francês)


Referência:

BARROS, Manoel. O guardador de águas: seção V. In: __________. O guardador de águas. 1. ed. Rio de Janeiro, RJ: Alfaguara, 2017. p. 19.

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