O modo contemplativo adotado pelo ente lírico, de simplesmente ver os outros passar, é a forma que vai de encontro àquela que a maioria das pessoas adota em vida: a de adentrar o rio impetuoso dos acontecimentos que as levam de roldão, muitas vezes sem assimilar o real sentido dos fatos em que imersas, levando-as a se sentirem frustradas com o cenário perante o qual se deparam mais à frente.
Trata-se de um exercício de ascese, de onde o poeta recopila em versos tudo o que se passa à volta, parecendo não querer chegar “a lugar algum” – e tanto menos às paragens onde os outros vão ter –, pouco importa: o estado a que o vate aspira é o de simples entretenimento, ver alguma beleza na vertigem dos dias.
J.A.R. – H.C.
João Luís Barreto Guimarães
(n. 1967)
Decepção à Regra
Sentar-me e
ver os outros passar é o
meu exercício favorito. Entretém.
Não esgota.
É gratuito. Neste meu jogo-do-não
são os outros que passam
(é aos outros que reservo a tarefa
de passar). Lavo daí os pés.
Escrevo de dentro da vida.
Pode até parecer que assim não
chego a lugar algum, mas também quem
é que quer ir
ao sítio dos outros?
O passeio de domingo
(Carl Spitzweg: pintor alemão)
Referência:
GUIMARÃES, João Luís. Decepção à regra.
In: REIS-SÁ, Jorge; LAGE, Rui (Selecção, organização, introdução e notas). Poemas
portugueses: antologia da poesia portuguesa do séc. XIII ao séc. XXI.
Prefácio de Vasco Graça Moura. 1. ed. Porto, PT: Porto Editora, 2009. p. 2052.
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