Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 3 de janeiro de 2021

Antonio Carlos Secchin - Poema para 2003

Neste belo poema, escrito na virada de 2002 a 2003, Secchin emprega a metáfora do adubo, representado pelo que já se tornou memória nos transcorridos dias do ano velho, como fertilizante de novas experiências a fruir no ano novo – um ano que, ao mesmo tempo, se domina e se desconhece, pois há mistérios não manifestos nessa projeção futura de trilhas já percorridas.

Que o galo desperte o dia, rompendo dolorosamente a madrugada. E que as esperanças rebrilhem em nossos olhos, plenas de concretude. Mas se assim não dispuser o fado que nos cabe, já vale a dignidade de haver perseguido um nobre propósito. Ou como diria Pessoa: “Dá-me lírios, lírios, / E rosas também. / Mas se não tens lírios / Nem rosas a dar-me, / Tem vontade ao menos / De me dar os lírios / E também as rosas”. Eis aí o schopenhaueriano “Mundo como Vontade e Representação”! (rs)

J.A.R. – H.C.

 

Antonio Carlos Secchin

(n. 1952)

 

Poema para 2003

 

Vai, ano velho, leva em teu bojo

o despojo do que foi embora,

mas que a cinza do sonho desfeito

adube de vida o que é morto

e transforme o jamais em agora.

Teu corpo já bem maduro

sustenta o tempo que virá depois.

Em ti revejo o avesso do futuro,

recém-antigo 2002.

Canta um galo,

mínimo e absoluto.

Canta,

canta um galo na noite estrelada.

De seu bico

não brota apenas a voz do dia,

mas a dor de perder a madrugada.

Fluímos num tufão de pasmo e gozo

sentindo que o passado é um destino,

pois brilha sobre a morte e os precipícios

uma luz do que em nós inda é menino.

Saudemos, então, de novo,

e mesmo assim pela primeira vez:

nós te sabemos e desconhecemos,

ó velho amigo 2003.

 

Manhã de Ano Novo

(Alexander Levchenkov: pintor russo)


Referência:

SECCHIN, Antonio Carlos. Poema para 2003. In: __________. 50 poemas escolhidos pelo autor. Rio de Janeiro, RJ: Galo Branco, 2006. p. 39. (Coletânea ‘50 poemas escolhidos pelo autor’; v. 16)

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