Neste belo poema, escrito na virada de 2002 a 2003, Secchin emprega a metáfora do adubo, representado pelo que já se tornou memória nos transcorridos dias do ano velho, como fertilizante de novas experiências a fruir no ano novo – um ano que, ao mesmo tempo, se domina e se desconhece, pois há mistérios não manifestos nessa projeção futura de trilhas já percorridas.
Que o galo desperte o dia, rompendo dolorosamente a madrugada. E que as esperanças rebrilhem em nossos olhos, plenas de concretude. Mas se assim não dispuser o fado que nos cabe, já vale a dignidade de haver perseguido um nobre propósito. Ou como diria Pessoa: “Dá-me lírios, lírios, / E rosas também. / Mas se não tens lírios / Nem rosas a dar-me, / Tem vontade ao menos / De me dar os lírios / E também as rosas”. Eis aí o schopenhaueriano “Mundo como Vontade e Representação”! (rs)
J.A.R. – H.C.
Antonio Carlos Secchin
(n. 1952)
Poema para 2003
Vai, ano velho, leva em teu bojo
o despojo do que foi embora,
mas que a cinza do sonho desfeito
adube de vida o que é morto
e transforme o jamais em agora.
Teu corpo já bem maduro
sustenta o tempo que virá depois.
Em ti revejo o avesso do futuro,
recém-antigo 2002.
Canta um galo,
mínimo e absoluto.
Canta,
canta um galo na noite estrelada.
De seu bico
não brota apenas a voz do dia,
mas a dor de perder a madrugada.
Fluímos num tufão de pasmo e gozo
sentindo que o passado é um destino,
pois brilha sobre a morte e os precipícios
uma luz do que em nós inda é menino.
Saudemos, então, de novo,
e mesmo assim pela primeira vez:
nós te sabemos e desconhecemos,
ó velho amigo 2003.
Manhã de Ano Novo
(Alexander Levchenkov: pintor russo)
Referência:
SECCHIN, Antonio Carlos. Poema para 2003. In: __________. 50 poemas
escolhidos pelo autor. Rio de Janeiro, RJ: Galo Branco, 2006. p. 39.
(Coletânea ‘50 poemas escolhidos pelo autor’; v. 16)
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