O cenário que Sena escrutina nas duas primeiras estrofes deste poema não é exatamente o que se esperaria de um Natal em tempos de normalidade – para o qual os versos idílicos da terceira estância são conformes −, mais parecendo a descrição de um episódio bélico − estamos em 1943! −, em que aeronaves de combate sobrevoam terra e mar à procura do inimigo, voltando à base ao cair da noite.
O arremate doloroso do dístico final contrasta a ideia de Natividade − a pressupor uma vida que encarna para a alegria dos genitores −, à da morte de crianças durante o conflito − com manchas sanguinárias por toda parte. E, ainda: a Ressurreição de Cristo, segundo as Escrituras, e uma duvidosa ressurreição dessas crianças numa rósea aurora.
J.A.R. – H.C.
Jorge de Sena
(1919-1978)
Natal
Nos aviões que o mar imenso cruzam,
para que as ondas desçam das alturas
à terra em que se espraiam, ninguém vai.
Quais pássaros, se os move o coração,
ficou na primavera a esperança do regresso.
Descem com a noite, pousam no arvoredo,
e, afinal, mais longe é que pousaram…
Não há já folhas secas, este ano;
o vento frio leva papéis velhos
sobre a terra húmida… E as ervas
encurvam-se, e levantam-se manchadas
de alguma tinta: como a humanidade.
Em toda a parte, os mortos se demoram,
os feridos se recordam… Será sangue, então.
“Há dois mil anos…” – dizem várias vozes,
e várias letras, várias forças de hábito.
No entanto, quem nasceu foi um segredo,
um querer encher de nomes uma ausência
e de confiança as mães que nos embalam.
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
... ... ...
Crianças se sumiram no incêndio…
Que rósea aurora as ressuscitará?
Sem título
(Jane Rainey: artista irlandesa)
Referência:
SENA, Jorge de. Natal. In: __________. Poesia
- I. Lisboa, PT: Livraria Morais Editora, 1961. p. 109-110. (‘Círculo de
Poesia’; n. 13)
Nenhum comentário:
Postar um comentário