A felicidade, aos poucos, vai deixando de ser um mistério: nunca se viram tantas pesquisas e publicadas tantas obras de não ficção sobre a matéria. Idem, poemas: Carver a experimentou inesperadamente, em meio à beleza, num pequeno feito de dois garotos a entregarem jornais, logo cedo – “alheio a qualquer colóquio matutino a respeito” −, dispensadas outros contingentes argumentos.
Nesse contexto, felicidade também é metafelicidade e suas múltiplas digressões, por que não?! Veja-se o teor deste poema de Álvaro de Campos, heterônimo de Pessoa − “Às vezes tenho ideias felizes”: “Às vezes tenho ideias felizes, / Ideias subitamente felizes, em ideias / E nas palavras em que naturalmente se despejam... // Depois de escrever, leio... / Por que escrevi isto? / Onde fui buscar isto? / De onde me veio isto? / Isto é melhor do que eu... / Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta / Com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos?...”
J.A.R. – H.C.
Raymond Carver
(1938-1988)
Happiness
So early it’s still almost dark out.
I’m near the window with coffee,
and the usual early morning stuff
that passes for thought.
When I see the boy and his friend
walking up the road
to deliver the newspaper.
They wear caps and sweaters,
and one boy has a bag over his shoulder.
They are so happy
they aren’t saying anything, these boys.
I think if they could, they would take
each other’s arm.
It’s early in the morning,
and they are doing this thing together.
They come on, slowly.
The sky is taking on light,
though the moon still hangs pale over the water.
Such beauty that for a minute
death and ambition, even love,
doesn’t enter into this.
Happiness. It comes on
unexpectedly. And goes beyond, really,
any early morning talk about it.
Em: “Where water comes together with
other water” (1985)
Os jornaleiros romanos
(Martin J. Heade: pintor norte-americano)
Felicidade
Tão cedo que ainda está escuro lá fora.
Estou perto da janela com o café
e tudo aquilo que normalmente a essa hora
nos passa pela mente.
Quando vejo o garoto e seu amigo
subindo a rua
para entregar o jornal.
Eles usam bonés e agasalhos,
e um deles carrega uma mochila no ombro.
Estão tão felizes
que nem dizem nada, os garotos.
Acho que, se pudessem, estariam até
de braços dados.
É de manhã bem cedo
e estão fazendo isso juntos.
Lá vêm eles, lentamente.
O céu começa a clarear,
embora a lua ainda paire sobre a água.
Tanta beleza que por um minuto
a morte e a ambição, até mesmo o amor,
não têm lugar aqui.
Felicidade. Ela vem
inesperadamente. E, na verdade, vai além
de qualquer discurso sonolento.
Em: “Onde a água se junta a outra água”
(1985)
Referência:
CARVER, Raymond. Happiness /
Felicidade. Tradução de Cide Piquet. In: __________. Esta vida: poemas escolhidos. Seleção e tradução de Cide Piquet.
Edição bilíngue. 1. ed. São Paulo, SP: Editora 34, 2017. Em inglês: p. 162; em
português: p. 57.
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