Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

W. H. Auden - Bem, isso é tudo

Estamos a 29.12 e ainda não é a exata hora de se desmontar a árvore de Natal e de se recolher toda a decoração das festas do fim de ano – na forma em que reclama a voz lírica a enunciar o excerto poético abaixo, vale dizer, na terceira parte de um longo Oratório de Natal, intitulado “For the time being” (“Pelo momento”) (1944), dedicado por Auden à memória de sua recém-falecida genitora.

Há nele interessantes injunções psicológicas e filosóficas, em conexão com tradicionais passagens da Natividade, conferindo aos versos um intrépido matiz: trata-se de uma dádiva do poeta aos seus leitores, vivendo, como ele, “o momento mais difícil de todos”, a saber, o tempo presente, um ciclo de desafios e de bênçãos, com duração limitada e porvir alimentado pela fé.

J.A.R. – H.C.

 

W. H. Auden

(1907-1973)

 

From “For the time being”

 

Well, so that is that. Now we must dismantle the tree,

Putting the decorations back into their cardboard boxes –

Some have got broken – and carrying them up to the attic.

The holly and the mistletoe must be taken down and burnt,

And the children got ready for school. There are enough

Left-overs to do, warmed-up, for the rest of the week –

Not that we have much appetite, having drunk such a lot,

Stayed up so late, attempted – quite unsuccessfully –

To love all of our relatives, and in general

Grossly overestimated our powers. Once again

As in previous years we have seen the actual Vision and failed

To do more than entertain it as an agreeable

Possibility, once again we have sent Him away,

Begging though to remain His disobedient servant,

The promising child who cannot keep His word for long.

The Christmas Feast is already a fading memory,

And already the mind begins to be vaguely aware

Of an unpleasant whiff of apprehension at the thought

Of Lent and Good Friday which cannot, after all, now

Be very far off. But, for the time being, here we all are,

Back in the moderate Aristotelian city

Of darning and the Eight-Fifteen, where Euclid’s geometry

And Newton’s mechanics would account for our experience,

And the kitchen table exists because I scrub it.

It seems to have shrunk during the holidays. The streets

Are much narrower than we remembered; we had forgotten

The office was as depressing as this. To those who have seen

The Child, however dimly, however incredulously,

The Time Being is, in a sense, the most trying time of all.

For the innocent children who whispered so excitedly

Outside the locked door where they knew the presents to be

Grew up when it opened. Now, recollecting that moment

We can repress the joy, but the guilt remains conscious;

Remembering the stable where for once in our lives

Everything became a You and nothing was an It.

And craving the sensation but ignoring the cause,

We look round for something, no matter what, to inhibit

Our self-reflection, and the obvious thing for that purpose

Would be some great suffering. So, once we have met the Son,

We are tempted ever after to pray to the Father;

“Lead us into temptation and evil for our sake.”

They will come, all right, don’t worry; probably in a form

That we do not expect, and certainly with a force

More dreadful than we can imagine. In the meantime

There are bills to be paid, machines to keep in repair,

Irregular verbs to learn, the Time Being to redeem

From insignificance. The happy morning is over,

The night of agony still to come; the time is noon:

When the Spirit must practice his scales of rejoicing

Without even a hostile audience, and the Soul endure

A silence that is neither for nor against her faith

That God’s Will will be done, that, in spite of her prayers,

God will cheat no one, not even the world of its triumph.

 

Véspera do Ano Novo

(Grigory Sokolovsky: pintor ucraniano)

 

Excerto de “Pelo momento

 

Bem, isso é tudo. Agora devemos desmontar a árvore,

Repor os adornos em suas caixas de papelão –

Alguns foram avariados – e carregá-los para o sótão.

O azevinho e o visco devem ser retirados e queimados,

E as crianças prepararem-se para a escola. Há sobras

Suficientes a guarnecer, aquecidas, pelo resto da semana –

Não que tenhamos muito apetite, tendo bebido tanto,

Ficado acordados até tarde, tentado – sem êxito –

Amar todos os nossos familiares e, em geral,

Superestimado grosseiramente nossos poderes. Uma vez mais,

Como nos anos anteriores, contemplamos a verdadeira Visão

E não conseguimos mais que considerá-la uma agradável

Possibilidade, mais uma vez mandamo-Lo embora,

Rogando-Lhe, porém, para seguir como Seu desobediente servo,

A promitente criança incapaz de sempre cumprir Sua palavra.

As Festas do Natal já são memórias em desvanecimento,

E logo a mente começa a estar vagamente consciente

De uma desagradável lufada de apreensão, ao refletir sobre

A Quaresma e a Sexta-Feira Santa, as quais agora, afinal,

Tão longe não distam. Mas, por enquanto, aqui estamos todos,

De volta à moderada cidade aristotélica da reparação e aos

Oitocentos e Quinze, época em que a geometria de Euclides

E a mecânica de Newton dariam conta de nossa experiência,

E da existência da mesa da cozinha, uma vez que a esfrego.

Parece que houve contração durante as férias. As ruas

São bem mais estreitas do que lembrávamos; tínhamos

Esquecido de que o escritório era assim tão deprimente. Aos

Que viram o Menino, por mais vago e incrédulo que seja,

O Tempo Presente é, de certa forma, o mais difícil de todos.

Pois as inocentes crianças que tão excitadamente sussurravam

Por trás da porta trancada, onde sabiam estar os presentes,

Cresceram quando ela se abriu. Agora, evocando o momento,

Podemos reprimir a alegria, mas a culpa subsiste-nos consciente;

Recordando o estábulo onde, por uma vez em nossas vidas,

Tudo se converteu em um Tu e coisa alguma era o Outro.

E ansiando pela sensação, embora a ignorar a causa,

Buscamos algo ao redor, não importa o que aconteça, para inibir

Nossa autorreflexão, e um móbil óbvio para tal propósito

Seria um grande sofrimento. Assim, conhecendo o Filho,

Somos doravante tentados a suplicar ao Pai:

“Conduze-nos à tentação e ao mal, pelo nosso bem”.

Eles virão, tudo certo, não se aflijam; porventura em uma forma

Que não aguardamos, e certamente com uma força

Mais espantosa do que a podemos imaginar. Nesse ínterim,

Há contas a pagar, máquinas que prosseguem em reparos,

Verbos irregulares a aprender, o Tempo Presente a redimir

Da insignificância. A manhã feliz chegou a termo,

A noite da agonia ainda por vir; é o ápice do meio-dia:

Quando o Espírito deve pôr em prática suas escalas de júbilo,

Mesmo sem uma audiência hostil, e a Alma suportar

Um silêncio, que não é nem a favor nem contra a sua fé,

De que se fará a Vontade de Deus; de que, malgrado seus rogos,

Deus não enganará ninguém, nem mesmo, de seu triunfo, o mundo.


Referência:

AUDEN, W. H. From “For the time being”. In: HOLLANDER, John; McCLATCHY, J. D. (Sel. & Ed.). Christmas poems. New York, NY: Alfred A. Knopf, 1999. p. 221-223. (‘Everyman’s Library: Pocket Poets’)

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