Pessoa − essa esfinge lírica − surge nos versos do infratranscrito soneto como objeto da mirada de outro poeta, que, exatamente por ser poeta, consegue, melhor do que ninguém, vislumbrar as peculiaridades das linhas do enigma heteronímico de tal esfinge, tantas são as correntezas destrinçadas para explicar e reexplicar o que lhe vai em mente.
No intrépido mar, cujas águas fluem “do nada para o nada”, Pessoa, segundo Ferreira, teria o espírito assoberbado pelo passado, embora a perscrutar o futuro, numa ficção dedicada aos seus contemporâneos e devotada a descortinar os mistérios da existência confrangida pelo tempo. Isto porque: “A humanidade sofredora é cega – o resto é apenas ser...”!
J.A.R. – H.C.
Reinaldo Ferreira
(1922-1959)
A Fernando Pessoa (Ele mesmo)
Cada verso é uma esfinge ter falado.
Mas quanto mais explícito ela o diz,
Mais tudo permanece inexplicado
E menos se apreende o que ela quis.
Erra um sussurro, tão etéreo e alado
Que nem mesmo silêncio o contradiz.
E o ouvi-lo, ou ávido ou irado
Na busca dum segredo sem raiz,
E como se em pensar − um descampado −
Passasse fugitiva e intensamente
O Tempo todo inteiro projectado
E a sombra ali marcasse, na corrente
Do nada para o nada, inda passado
E já futuro, a ficção do presente.
Fernando Pessoa
(1888-1935)
Referência:
FERREIRA, Reinaldo. A Fernando Pessoa
(ele mesmo). In: __________. Poemas. Prefácio de José Régio. 2. ed.
Lisboa, PT: Portugália, mai.1966. p. 56. (Coleção ‘Poetas de Hoje’; v. 21)
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