A areia como memória surge feito metáfora neste breve poema do poeta italiano, fluindo rarefeita e silenciosa entre os dois hemisférios de uma ampulheta − dispositivo a demarcar a passagem irreversível do tempo: as lembranças tornam-se espólios no plano da mente, reverberando nos domínios da carne que caminha para o inelutável ocaso.
Nota-se nos versos uma comoção com a fragilidade da vida, sempre precária, sempre a pressagiar o fim. Daí esse regresso ao instante mesmo em que tudo ainda se encontrava nas instâncias de um sol a pino, visando à obtenção de um certo sentido de harmonia e de congratulação com os fatos que pululam na biografia do ente lírico: um “nada” perante a sucessão dos éons, mas um regresso a “tudo” que delimita a sua efêmera existência.
J.A.R. – H.C.
Giuseppe Ungaretti
(1888-1970)
Variazioni su nulla
Quel nonnulla di sabbia che trascorre
Dalla clessidra muto e va posandosi,
E, fugaci, le impronte sul carnato,
Sul carnato che muore, d’una nube...
Poi mano che rovescia la clessidra,
Il ritorno per muoversi, di sabbia,
Il farsi argentea tacito di nube
Ai primi brevi lividi dell’alba...
La mano in ombra la clessidra volse,
E, di sabbia, il nonnulla che trascorre
Silente, è unica cosa che ormai s’oda
E, essendo udita, in buio non scompaia.
Vanitas: natureza-morta com crânio e ampulheta
(Adriaen Coorte: pintor holandês)
Variações sobre nada
O mínimo de areia que em silêncio
passa pela ampulheta e deposita-se
e os traços fugidios na carnadura,
na carnadura à morte, de uma nuvem...
Depois a mão que inverte essa ampulheta,
o repor-se da areia em movimento,
um pratear-se tácito de nuvem:
tímido início lívido da aurora...
A mão revira em sombras a ampulheta
e o quase nada que, de areia, passa
calado é tudo o que se pode ouvir
e, sendo ouvido, em treva não se afunda.
Referência:
UNGARETTI, Giuseppi. Variazoni su nulla
/ Variações sobre nada. Tradução de Nelson Ascher. In: ASCHER, Nelson (Tradução
e Organização). Poesia alheia: 124 poemas traduzidos. Rio de Janeiro,
RJ: Imago, 1998. Em italiano: p. 262; em português: p. 263. (Coleção “Lazuli”)
Nenhum comentário:
Postar um comentário