Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 6 de dezembro de 2020

Miguel Torga - Último Reduto

O coração do poeta é o último reduto onde perdura certa forma de vida íntegra, assim como o terno modo de ser de uma criança, sob o qual não se padece de amarguras ou desencantos: totalmente aberto ao mundo, receptivo às manifestações de amor que lhe sejam direcionadas, qual torrente “generosa, fecunda e permanente”, sem intenções ladinas ou acobertadas.

Quase se poderia associar a mensagem de Torga às palavras de Cristo nos Evangelhos (Mateus 18:3): é preciso albergar na alma um espírito de criança, sem quaisquer laivos de malícia, para se poder entrar no “Reino dos Céus”, expressão que, nestas linhas, se converteriam num estado de plenitude, gratidão e de confiança perante o que se exterioriza no mundo.

J.A.R. – H.C.

Miguel Torga

(1907-1995)

 

Último Reduto

 

Meu coração é bom naturalmente.

Gosta do mar, da terra e das crianças.

Bate uma vida inteira sem mudanças,

Se ninguém o magoar.

No seu calor, é quente

Qualquer amor que o venha visitar.

 

Fonte dum rio que dá volta ao corpo

Da humanidade,

Nunca, em nenhuma idade,

Empobreceu a força do caudal!

Generosa, fecunda e permanente,

À vermelha corrente

Regou sempre a secura do areal.

 

E querem duvidar desta certeza!

Querem que uma represa

De amargura

Seja a vil sepultura

Dum abraço que sempre se alargou!

Querem que a noite da desilusão

Se dobre sobre cada pulsação

Da onda que a ternura levantou!

 

Menino a assobiar

(Frank Duveneck: pintor norte-americano)


Referência:

TORGA, Miguel. Último reduto. In: __________. Cântico do homem: poesia. 4. ed. Coimbra, PT: Gráfica de Coimbra, jan.1974. p. 74-75.

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