O coração do poeta é o último reduto onde perdura certa forma de vida íntegra, assim como o terno modo de ser de uma criança, sob o qual não se padece de amarguras ou desencantos: totalmente aberto ao mundo, receptivo às manifestações de amor que lhe sejam direcionadas, qual torrente “generosa, fecunda e permanente”, sem intenções ladinas ou acobertadas.
Quase se poderia associar a mensagem de
Torga às palavras de Cristo nos Evangelhos (Mateus 18:3): é preciso albergar na
alma um espírito de criança, sem quaisquer laivos de malícia, para se poder
entrar no “Reino dos Céus”, expressão que, nestas linhas, se converteriam num
estado de plenitude, gratidão e de confiança perante o que se exterioriza no
mundo.
J.A.R. – H.C.
Miguel Torga
(1907-1995)
Último Reduto
Meu coração é bom naturalmente.
Gosta do mar, da terra e das crianças.
Bate uma vida inteira sem mudanças,
Se ninguém o magoar.
No seu calor, é quente
Qualquer amor que o venha visitar.
Fonte dum rio que dá volta ao corpo
Da humanidade,
Nunca, em nenhuma idade,
Empobreceu a força do caudal!
Generosa, fecunda e permanente,
À vermelha corrente
Regou sempre a secura do areal.
E querem duvidar desta certeza!
Querem que uma represa
De amargura
Seja a vil sepultura
Dum abraço que sempre se alargou!
Querem que a noite da desilusão
Se dobre sobre cada pulsação
Da onda que a ternura levantou!
Menino a assobiar
(Frank Duveneck: pintor norte-americano)
Referência:
TORGA, Miguel. Último reduto. In:
__________. Cântico do homem: poesia. 4. ed. Coimbra, PT: Gráfica de
Coimbra, jan.1974. p. 74-75.
Nenhum comentário:
Postar um comentário