Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Nuno de Sampayo - A Anunciação

Sob uma forma não convencional de enunciar os desígnios divinos – pelo menos não em conformidade à narrativa assente nos textos bíblicos −, a voz lírica, identificada com o anjo Gabriel, dirige-se a Maria, que, a depreender-se do sentido das palavras do arauto, sem o pressentir, já gesta em seu ventre a venerável criança – um lírio a germinar no jardim. 

Observa-se a atribuição de um transcorrer não exatamente secular ao tempo, como se o evento estivesse à margem do que se passa na vida mundana e marcadamente histórica à volta, tal que se possa disso deduzir a futura missão do infante à espera: a de redentor pleno de espiritualidade, devotado a um múnus, no limite de sua própria existência.

J.A.R. – H.C.

Anunciação

(John Collier: artista norte-americano)

 

A Anunciação

 

Deixa-me pousar, ó piedosa!, nos lagos dos teus olhos

E nas tuas tranças que são regatos frescos.

Deixa-me entrar quando o crepúsculo descer

No jardim onde Ele germina entre os lírios

 

Num pequeno recanto do tempo, invulnerável ao tempo

Onde vais sendo tudo, como a madrugada, sem o saberes.

Ah! como estás retraída, e cheia de destino, ah! como estás retraída

Assim encostada como uma rosa ao espinheiro outonal!

 

Vinha-te saudar, ó incomparável!, vinha-te saudar,

Mas se Ele cresce em ti, que te posso dizer?

As minhas palavras quebram-se no Seu silêncio

E a minha hora mais profunda não O atinge.

 

Assim regresso à Sua vinha, enquanto o dia

Nasce sobre os montes onde os olivais florescem.

Há longas pausas no bosque das tuas mãos serenas

E estás tão cheia d’Ele que já nem o pressentes.

 

Em: “A Orla e o Tempo” (1956)

 

Detalhe de “A Anunciação”

(Ticiano Vecellio: pintor italiano)


Referência:

SAMPAYO, Nuno de (1925-2005). A adoração dos pastores. In: SENA, Jorge de (Selecção, Prefácio e Notas). Líricas portuguesas: 3ª série. Lisboa, PT: Portugália, nov. 1958. p. 413. (‘Antologias Universais’; Poesia V: Líricas Portuguesas III)

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