Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 20 de maio de 2020

E. V. Ramakrishnan - Gatos Vadios

A natureza correlata entre a dúvida e o mistério – costumeiramente atribuídos aos gatos vadios, caminhantes pelas ruas sem destino –, resulta, aqui, contrastada com a índole acomodada dos gatos caseiros, que se albergam sob as ditas “ficções domésticas”. Contudo, segundo as derradeiras linhas deste poema, gatos calaceiros, que atravessam ruas cheias de gente, não são, necessariamente, a fonte de maus presságios que esperamos que sejam.

Ramakrishnan descreve a maneira como os gatos vadios “monitoram o mundo a partir das copas das árvores e realizam suas reuniões semanais no cemitério”, de forma a sugerir uma hipotética cena noturna, onde confabulam sobre a necessidade de se enfocar um mesmo problema sob diversos pontos de vista, pois, caso contrário, há de se ter sempre uma abordagem enviesada do assunto em pauta: “O que se vê é alterado pelo ato de ver. (...) Aquele que vê, por sua vez, é alterado por aquilo que vê”.

Daí porque os gatos de rua habituam-se a saltar de telhado em telhado, para contemplar o mundo a partir de distintas perspectivas. Ou, empregando-se uma expressão bastante trivial, a que muito se valem as pessoas nos dias que correm: “É necessário pensar fora da caixinha!”.

J.A.R. – H.C.

E. V. Ramakrishnan
(n. 1951)

Stray Cats

They are not exactly homeless.
They are dissidents who have lost their faith
in furnished interiors, morning walks,
the cake and the cutlery.

When you have nine lives to live
you learn to take things in your stride.
You learn to stretch your body
at full length and yawn at domestic
fictions. And for this reason

you figure in horror films
in the mandatory moment
between the flash of lightning
and the appearance of a ghost.
The light is darkish blue and you see
yourself in the iris of the burning
eye. The horror is in the seeing.
What you see is altered by the act
of seeing. The mystery does not stop
there. The seer is in turn altered
by what he sees. Having known this,
stray cats jump from roof to roof.

They monitor the world from treetops
and hold their weekly meetings
in the graveyard, like wandering mendicants.

And when they walk out of the mirror
of the sun and cross the crowded road
in a flash, for a shining moment,
they lurk in the light like a giant shadow
of doubt. Ill-omens to those who cannot
see beyond what they see.

Gatos da Cidade
(Tom Shropshire: pintor norte-americano)

Gatos Vadios

Eles não são exatamente sem lar.
São dissidentes que perderam a fé
em interiores mobiliados, passeios matutinos,
em bolo e talheres.

Quando se tem nove vidas para viver
aprende-se a levar as coisas com calma.
Aprende-se a alongar o corpo por completo
e a bocejar diante das ficções domésticas.
E, por tal motivo,

passa-se a figurar em filmes de terror
no obrigatório momento
entre o clarão de um relâmpago
e a aparição de um fantasma.

A luz é azul escuro e a pessoa se
vê na íris do flamejante olho.
O horror está na visão.
O que se vê é alterado pelo ato
de ver. O mistério não para
por aí. Aquele que vê, por sua vez, é alterado
por aquilo que vê. Sabendo disso,
os gatos vadios saltam de teto em teto.

Eles monitoram o mundo a partir das copas
das árvores e realizam suas reuniões semanais
no cemitério, como mendigos errantes.

E quando se afastam dos reflexos
do sol e, num piscar de olhos, cruzam o caminho
cheio de gente, por um radioso momento,
movem-se furtivos na luz como uma gigantesca
sombra de dúvida. Maus augúrios para aqueles
que não podem ver mais além do que veem.


Referência:

RAMAKRISHNAN, E. V. Stray cats. In: THAYIL, Jeet (Ed.). 60 indian poets. New Delhi, IN: Penguin Books India, 2008. p. 351-352.
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