A natureza correlata entre a dúvida e o mistério – costumeiramente
atribuídos aos gatos vadios, caminhantes pelas ruas sem destino –, resulta,
aqui, contrastada com a índole acomodada dos gatos caseiros, que se albergam sob
as ditas “ficções domésticas”. Contudo, segundo as derradeiras linhas deste
poema, gatos calaceiros, que atravessam ruas cheias de gente, não são,
necessariamente, a fonte de maus presságios que esperamos que sejam.
Ramakrishnan descreve a maneira como os gatos vadios “monitoram o mundo a
partir das copas das árvores e realizam suas reuniões semanais no cemitério”,
de forma a sugerir uma hipotética cena noturna, onde confabulam sobre a necessidade
de se enfocar um mesmo problema sob diversos pontos de vista, pois, caso
contrário, há de se ter sempre uma abordagem enviesada do assunto em pauta: “O
que se vê é alterado pelo ato de ver. (...) Aquele que vê, por sua vez, é alterado
por aquilo que vê”.
Daí porque os gatos de rua habituam-se a saltar de telhado em telhado,
para contemplar o mundo a partir de distintas perspectivas. Ou, empregando-se uma
expressão bastante trivial, a que muito se valem as pessoas nos dias que
correm: “É necessário pensar fora da caixinha!”.
J.A.R. – H.C.
E. V. Ramakrishnan
(n. 1951)
Stray Cats
They are not exactly
homeless.
They are dissidents
who have lost their faith
in furnished
interiors, morning walks,
the cake and the cutlery.
When you have nine
lives to live
you learn to take
things in your stride.
You learn to stretch
your body
at full length and
yawn at domestic
fictions. And for
this reason
you figure in horror films
in the mandatory
moment
between the flash of
lightning
and the appearance of
a ghost.
The light is darkish
blue and you see
yourself in the iris
of the burning
eye. The horror is in
the seeing.
What you see is
altered by the act
of seeing. The
mystery does not stop
there. The seer is in
turn altered
by what he sees.
Having known this,
stray cats jump from
roof to roof.
They monitor the
world from treetops
and hold their weekly
meetings
in the graveyard,
like wandering mendicants.
And when they walk
out of the mirror
of the sun and cross
the crowded road
in a flash, for a
shining moment,
they lurk in the
light like a giant shadow
of doubt. Ill-omens
to those who cannot
see beyond what they
see.
Gatos da Cidade
(Tom Shropshire: pintor
norte-americano)
Gatos Vadios
Eles não são
exatamente sem lar.
São dissidentes que
perderam a fé
em interiores
mobiliados, passeios matutinos,
em bolo e talheres.
Quando se tem nove
vidas para viver
aprende-se a levar as
coisas com calma.
Aprende-se a alongar
o corpo por completo
e a bocejar diante das
ficções domésticas.
E, por tal motivo,
passa-se a figurar em
filmes de terror
no obrigatório
momento
entre o clarão de um
relâmpago
e a aparição de um
fantasma.
A luz é azul escuro e
a pessoa se
vê na íris do flamejante
olho.
O horror está na
visão.
O que se vê é
alterado pelo ato
de ver. O mistério
não para
por aí. Aquele que
vê, por sua vez, é alterado
por aquilo que vê.
Sabendo disso,
os gatos vadios
saltam de teto em teto.
Eles monitoram o
mundo a partir das copas
das árvores e
realizam suas reuniões semanais
no cemitério, como
mendigos errantes.
E quando se afastam
dos reflexos
do sol e, num piscar
de olhos, cruzam o caminho
cheio de gente, por
um radioso momento,
movem-se furtivos na
luz como uma gigantesca
sombra de dúvida. Maus
augúrios para aqueles
que não podem ver
mais além do que veem.
Referência:
RAMAKRISHNAN, E. V. Stray cats. In:
THAYIL, Jeet (Ed.). 60 indian poets.
New Delhi, IN: Penguin Books India, 2008. p. 351-352.
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