Numa poética trôpega de tantas abstrações, sob a forma de uma litania em
anáforas, o poeta colombiano discorre sobre o poema, tentando defini-lo
metaforicamente com imagens que exprimem o lado menos jubiloso do mundo – ou
mesmo o seu desconcerto –, a infundir um “lento naufrágio do desejo”, a muito
se parecer com um pássaro em fuga da morte, a quem, irremissivelmente, se
instila o “acre cereal da agonia”.
Cabe uma breve observação: ao findar a versão deste poema ao português,
encontrei uma bela tradução do mesmo poema, levada a efeito pelo ensaísta e
tradutor Geraldo Holanda Cavalcanti, da Academia Brasileira de Letras,
acessível neste endereço (p. 292-295 do doc.). Nota-se o lado “poeta” de
Geraldo na tradução, vertendo belamente o texto original ao nosso idioma –
distintamente da versão que ora apresento, mais próxima do literal.
J.A.R. – H.C.
Álvaro Mutis
(1923-2013)
Cada poema
Cada poema un pájaro
que huye
del sitio señalado
por la plaga.
Cada poema un traje
de la muerte
por las calles y
plazas inundadas
en la cera letal de
los vencidos.
Cada poema un paso
hacia la muerte,
una falsa moneda de
rescate,
un tiro al blanco en
medio de la noche
horadando los puentes
sobre el río,
cuyas dormidas aguas
viajan
de la vieja ciudad
hacia los campos
donde el día prepara
sus hogueras.
Cada poema un tacto
yerto
del que yace en la
losa de las clínicas,
un ávido anzuelo que
recorre
el limo blando de las
sepulturas.
Cada poema un lento
naufragio del deseo,
un crujir de los
mástiles y jarcias
que sostienen el peso
de la vida.
Cada poema un
estruendo de lienzos que derrumban
sobre el rugir helado
de las aguas
el albo aparejo del
velamen.
Cada poema invadiendo
y desgarrando
la amarga telaraña
del hastío.
Cada poema nace de un
ciego centinela
que grita al hondo
hueco de la noche
el santo y seña de su
desventura.
Agua de sueño, fuente
de ceniza,
piedra porosa de los
mataderos,
madera en sombra de
las siemprevivas,
metal que dobla por
los condenados,
aceite funeral de
doble filo,
cotidiano sudario del
poeta,
cada poema esparce
sobre el mundo
el agrio cereal de la
agonía.
O cemitério abandonado
(Yuliy Yulevich:
pintor russo)
Cada poema
Cada poema um pássaro
que foge
do local atingido
pela praga.
Cada poema um indumento
da morte
pelas ruas e praças
inundadas
na cera letal dos
vencidos.
Cada poema um passo em
direção à morte,
uma falsa moeda de resgate,
um tiro ao alvo no
meio da noite
perfurando as pontes
sobre o rio,
cujas adormecidas
águas viajam
da velha cidade até
os campos
onde o dia prepara suas
fogueiras.
Cada poema um toque hirto
do que jaz na mesa de
autópsia das clínicas,
um ávido anzol que percorre
o limo macio das
sepulturas.
Cada poema um lento
naufrágio do desejo,
um ranger dos mastros e cordames
que sustentam o peso
da vida.
Cada poema um
estrondo de telas que desabam
sobre o rugir gelado
das águas
o alvo aparelho do
velame.
Cada poema invadindo
e dilacerando
a amarga teia do fastio.
Cada poema nasce de
um sentinela cego
que grita ao oco
profundo da noite
a palavra chave de
sua desventura.
Água de sonho, fonte
de cinza,
pedra porosa dos
abatedouros,
madeira à sombra das
sempre-vivas,
sino que dobra pelos
condenados
óleo funeral de fio
duplo,
sudário cotidiano do
poeta,
cada poema esparge
sobre o mundo
o acre cereal da
agonia.
Referência:
MUTIS, Álvaro. Cada poema. In: MIRANDA,
Rocío (Ed.). 24 poetas latinoamericanos.
1. ed. México, MX: CIDCLI, 1997. p. 65-66. (‘Coedición Latinoamericana’)
❁
Grande poeta!
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