Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Álvaro Mutis - Cada poema

Numa poética trôpega de tantas abstrações, sob a forma de uma litania em anáforas, o poeta colombiano discorre sobre o poema, tentando defini-lo metaforicamente com imagens que exprimem o lado menos jubiloso do mundo – ou mesmo o seu desconcerto –, a infundir um “lento naufrágio do desejo”, a muito se parecer com um pássaro em fuga da morte, a quem, irremissivelmente, se instila o “acre cereal da agonia”.

Cabe uma breve observação: ao findar a versão deste poema ao português, encontrei uma bela tradução do mesmo poema, levada a efeito pelo ensaísta e tradutor Geraldo Holanda Cavalcanti, da Academia Brasileira de Letras, acessível neste endereço (p. 292-295 do doc.). Nota-se o lado “poeta” de Geraldo na tradução, vertendo belamente o texto original ao nosso idioma – distintamente da versão que ora apresento, mais próxima do literal.

J.A.R. – H.C.

Álvaro Mutis
(1923-2013)

Cada poema

Cada poema un pájaro que huye
del sitio señalado por la plaga.

Cada poema un traje de la muerte
por las calles y plazas inundadas
en la cera letal de los vencidos.

Cada poema un paso hacia la muerte,
una falsa moneda de rescate,
un tiro al blanco en medio de la noche
horadando los puentes sobre el río,
cuyas dormidas aguas viajan
de la vieja ciudad hacia los campos
donde el día prepara sus hogueras.

Cada poema un tacto yerto
del que yace en la losa de las clínicas,
un ávido anzuelo que recorre
el limo blando de las sepulturas.

Cada poema un lento naufragio del deseo,
un crujir de los mástiles y jarcias
que sostienen el peso de la vida.

Cada poema un estruendo de lienzos que derrumban
sobre el rugir helado de las aguas
el albo aparejo del velamen.

Cada poema invadiendo y desgarrando
la amarga telaraña del hastío.

Cada poema nace de un ciego centinela
que grita al hondo hueco de la noche
el santo y seña de su desventura.

Agua de sueño, fuente de ceniza,
piedra porosa de los mataderos,
madera en sombra de las siemprevivas,
metal que dobla por los condenados,
aceite funeral de doble filo,
cotidiano sudario del poeta,
cada poema esparce sobre el mundo
el agrio cereal de la agonía.

O cemitério abandonado
(Yuliy Yulevich: pintor russo)

Cada poema

Cada poema um pássaro que foge
do local atingido pela praga.

Cada poema um indumento da morte
pelas ruas e praças inundadas
na cera letal dos vencidos.

Cada poema um passo em direção à morte,
uma falsa moeda de resgate,
um tiro ao alvo no meio da noite
perfurando as pontes sobre o rio,
cujas adormecidas águas viajam
da velha cidade até os campos
onde o dia prepara suas fogueiras.

Cada poema um toque hirto
do que jaz na mesa de autópsia das clínicas,
um ávido anzol que percorre
o limo macio das sepulturas.

Cada poema um lento naufrágio do desejo,
um ranger dos  mastros e cordames
que sustentam o peso da vida.

Cada poema um estrondo de telas que desabam
sobre o rugir gelado das águas
o alvo aparelho do velame.

Cada poema invadindo e dilacerando
a amarga teia do fastio.

Cada poema nasce de um sentinela cego
que grita ao oco profundo da noite
a palavra chave de sua desventura.

Água de sonho, fonte de cinza,
pedra porosa dos abatedouros,
madeira à sombra das sempre-vivas,
sino que dobra pelos condenados
óleo funeral de fio duplo,
sudário cotidiano do poeta,
cada poema esparge sobre o mundo
o acre cereal da agonia.

Referência:

MUTIS, Álvaro. Cada poema. In: MIRANDA, Rocío (Ed.). 24 poetas latinoamericanos. 1. ed. México, MX: CIDCLI, 1997. p. 65-66. (‘Coedición Latinoamericana’)

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