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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 18 de maio de 2020

João Cabral de Melo Neto - Num monumento à aspirina

Como já aqui se disse, tudo pode ser mote para a elaboração de uma poesia de qualidade. Assim, nas mãos de um grande poeta, a exemplo de Melo Neto, até mesmo uma simples aspirina ganha novos contornos, além dos que corriqueiramente se conhece: um comprimido que se toma para aliviar as dores em geral, mas que muitos a ingerem, na forma indicada para infantes, com o objetivo de tornar o sangue mais afinado, prevenindo, assim, a ocorrência de infartos e acidentes vasculares cerebrais.

Essa finalidade da aspirina encontra-se memorada na segunda estrofe do poema abaixo. Na primeira, Cabral a metaforiza na forma do sol, um prático esplendor artificial, de “emprego fácil, portátil e barato”, porém capaz de funcionar tanto de dia quanto de noite, tornando “clara” a vida de quem a toma, pouco importando o momento de sua ingestão.

J.A.R. – H.C.

João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)

Num monumento à aspirina

Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis da meteorologia,
a toda a hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.

Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.

Em: “A Educação pela Pedra” (1962-1965)

Aspirina Bayer
(Bradford J. Salamon: pintor norte-americano)

Referência:

MELO NETO, João Cabral de. Num monumento à aspirina. In: __________. Da educação pela pedra à pedra do sono: antologia poética. 1. ed. São Paulo, SP: Círculo do Livro, 1986. p. 36.

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