Como já aqui se disse, tudo pode ser mote para a elaboração de uma
poesia de qualidade. Assim, nas mãos de um grande poeta, a exemplo de Melo
Neto, até mesmo uma simples aspirina ganha novos contornos, além dos que
corriqueiramente se conhece: um comprimido que se toma para aliviar as dores em
geral, mas que muitos a ingerem, na forma indicada para infantes, com o
objetivo de tornar o sangue mais afinado, prevenindo, assim, a ocorrência de
infartos e acidentes vasculares cerebrais.
Essa finalidade da aspirina encontra-se memorada na segunda estrofe do
poema abaixo. Na primeira, Cabral a metaforiza na forma do sol, um prático esplendor
artificial, de “emprego fácil, portátil e barato”, porém capaz de funcionar
tanto de dia quanto de noite, tornando “clara” a vida de quem a toma, pouco
importando o momento de sua ingestão.
J.A.R. – H.C.
João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)
Num monumento à aspirina
Claramente: o mais
prático dos sóis,
o sol de um
comprimido de aspirina:
de emprego fácil,
portátil e barato,
compacto de sol na
lápide sucinta.
Principalmente
porque, sol artificial,
que nada limita a
funcionar de dia,
que a noite não
expulsa, cada noite,
sol imune às leis da
meteorologia,
a toda a hora em que
se necessita dele
levanta e vem (sempre
num claro dia):
acende, para secar a
aniagem da alma,
quará-la, em linhos
de um meio-dia.
Convergem: a
aparência e os efeitos
da lente do
comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado
desse cristal,
polido a esmeril e
repolido a lima,
prefigura o clima
onde ele faz viver
e o cartesiano de
tudo nesse clima.
De outro lado, porque
lente interna,
de uso interno, por
detrás da retina,
não serve
exclusivamente para o olho
a lente, ou o
comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o
corpo inteiro,
o borroso de ao
redor, e o reafina.
Em: “A Educação pela Pedra” (1962-1965)
Aspirina Bayer
(Bradford J. Salamon:
pintor norte-americano)
Referência:
MELO NETO, João Cabral de. Num
monumento à aspirina. In: __________. Da
educação pela pedra à pedra do sono: antologia poética. 1. ed. São Paulo,
SP: Círculo do Livro, 1986. p. 36.
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