A bela adormecida contemplada pelo poeta é descrita por atributos que, sob
o ponto de vista lógico, são nada factíveis de se apresentarem no plano da
realidade, haja vista que antagônicos entre si – muito embora no domínio da
inação, do letargo, possam eles irromper da mente inconsciente daquele (ou
daquela, como no caso) que se encontra nos braços de Morfeu.
Vejam-se as parelhas: parada, mas andarilha; anjo desnudo, portanto sem
sexo, virgem e, paradoxalmente, com prole. Tais imagens, como outras sugeridas pelos
versos do soneto, são, em grande medida, desconcertantes para o leitor. Tudo
isso só é mesmo possível num sonho com características extremadamente surrealistas.
Ou será que os pintores dessa escola não seriam pródigos em trazer às telas
aquilo que de mais recôndito existe na mente humana?
J.A.R. – H.C.
Jorge de Lima
(1893-1953)
Dormes
Dormes. Surgem de ti
coisas pressagas.
Ó bela adormecida,
não tens sexo,
como as algas marítimas
que as vagas
jogam na praia em
renovado amplexo.
O vendaval é o mesmo
em que te apagas
num torvelinho de
ímpeto convexo;
dormindo, rodopias, e
te alagas
num turbilhão de
diálogos sem nexo.
Sonâmbula parada, és
a andarilha,
ilhada entre lençóis.
Virgem tens prole,
pois és ao mesmo
tempo avó, mãe, filha.
E que o sono
multíparo te viole,
anjo desnudo,
salamandra de asas
ressuscitada de
dormidas brasas.
Em: “Livro de Sonetos” (1949)
A ninfa adormecida e cupido
(John Hoppner: pintor
inglês)
Referência:
LIMA, Jorge de. Dormes. In: __________.
Antologia poética. Seleção e
posfácio de Fábio de Souza Andrade. São Paulo, SP: Cosac & Naify, 2014. p.
167.
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