O poeta se autoavalia como sendo um erro de Deus na criação, ou melhor, “um
erro consciente do erro de Deus, “uma parábola fracassada” – uma operação de
soma ou subtração, pouco importa! –, a começar por ser um homem, transpassado por
ceticismos e paixões, a perscrutar dores e, em consequência, sempre a ter o
gosto de cinzas nos lábios.
Se fosse mulher, afirma-o, as coisas seriam ainda mais antagônicas: ou
estaria encerrada em conventos, haurindo, muito provavelmente, uma educação ascética
para a vida, ou seria uma “epicurista”, partindo para o lado mais
explicitamente concupiscente da experiência humana – a se considerar a
biografia da personagem por ele citada na elucubração – Ninón (v. nota, mais
abaixo).
J.A.R. – H.C.
Luis Cardoza y Aragón
(1901-1992)
Recuerdo
Nací con la plena
conciencia de que Dios se había equivocado en mí. Yo era una suma (¿o una
resta?) mal hecha. Un error consciente del error de Dios. Iba a ser hembra – equilibrio
estable – y estoy seguro de que, si no fuese varón, hoy sería una Ninón epicureamente
insuperable o estaría ya en las fortificaciones. Soy una parábola fracasada.
(Escéptico y
apasionado, un deseo imperioso de buscar el dolor y por todos lados, siempre,
un sabor de cenizas. )
O anjo da lareira
(Max Ernst: pintor alemão)
Recordação
Nasci com a plena
consciência de que Deus havia se equivocado em mim. Era eu uma soma (ou uma subtração?) malfeita.
Um erro consciente do erro de Deus. Ia ser uma fêmea – equilíbrio estável – e
tenho certeza de que, se não fosse um varão, hoje seria uma Ninón (*) epicureamente
insuperável ou estaria já nos conventos. Sou uma parábola fracassada.
(Cético e apaixonado,
um desejo imperioso de buscar a dor e por todos os lados, sempre, um sabor de
cinzas.)
Nota:
(*) Estimo que o poeta, de origem
guatemalteca, embora radicado por anos a fio no México, esteja a se referir a
Ninón Sevilha (1929-2015), uma atriz cubana, mas que, como Aragón, também viveu
longamente naquele país. Sobre o lado “epicurista” da atriz, há de se observar que
atuou em clássicos do melodrama mexicano, como “Aventureira” (1950), “Vítimas do Pecado” (1951) e “Sensualidade” (1951). Quanto à menção ao intento de encerrar-se em fortificações, decerto
consiste na educação enclausurada em conventos – fato biográfico bastante
conhecido da vida de Niñon.
Referência:
ARAGÓN, Luis Cardoza y. Recuerdo. In:
MIRANDA, Rocío (Ed.). 24 poetas
latinoamericanos. 1. ed. México, MX: CIDCLI, 1997. p. 132. (‘Coedición
Latinoamericana’)
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