Deus é o Eterno inominável, mistério dos mistérios a abarcar toda a
criação: com tanta abundância, por qual motivo haveríamos de submergir no apego
às coisas materiais, sendo a vida um sopro que um dia se atenua e se extingue? “Todos
os rios vão para o mar, e contudo o mar não se enche; ao lugar para onde os
rios vão, para ali tornam eles a correr” (Ec 1:7).
A dicotomia entre o “ter” e o “ser”, vezes sem conta, já deu motivo a
inúmeras obras quer no ocidente quer no oriente. Mas uma sempre me vem à
memória quando o tema é exortado: “Ter ou ser?”, de Erich Fromm, um confronto
entre a exasperação do homem moderno por abundância material – como se, somente
ela fosse capaz de levá-lo à felicidade –, e o sentido maior do ser, não apenas
no plano individual, mas também no social e em outras ações experimentais,
capazes de inspirá-lo e motivá-lo à mudança de comportamento.
J.A.R. – H.C.
Kabir
(1440-1518)
[76]
Abre os olhos do amor
e vê que ele preenche este mundo.
Olha bem e o
encontrarás aqui mesmo, nesta terra.
Quando encontrares o satguru (*), ele despertará teu coração
E te desvelará o segredo
da aspiração e do desapego.
Entenderás, então,
que ele também transcende este mundo.
E sua teia de
caminhos te trará o encanto e o espanto.
Alcançar a meta sem
percorrer a estrada faz parte do jogo,
Pois unidade e
diversidade são um colar em sua mão.
Um só fio, múltiplas
contas: girá-lo é para ele um esporte.
Que diferença então
existe entre a posse e a renúncia?
Compreende isso e o
fogo de ter não te queimará outra vez.
Vê que, no seio de
todo movimento, ele repousa imóvel,
E, de sua informalidade,
irrompem miríades de formas;
Que, no epicentro do
cosmo, envolto em luz, ele se senta,
E mil sóis
empalideceriam ante o fulgor de seu rosto;
Que, diante de seus
pés, fluem as águas da vida e da morte,
E não existe qualquer
diferença entre um fluxo e outro.
Chamam-no vazio, a
ele que gera e sustém tudo o que existe.
Mas a filosofia não o
alcança e dele nada pode ser dito.
E como poderia – ó
irmão – se o afortunado que o contempla
Não consegue
distinguir corpo nem forma nem extensão?
Feliz de quem nele
ancora, pois transcende a vida e a morte.
Kabir diz:
A palavra que sai da
boca não o nomeia.
As letras que
percorrem o papel não o enlaçam.
Diante dele, sou como
a criança que prova um doce.
Por mais que me
esforce, como poderia descrever seu sabor?
Filha de Abbott Handerson Thayer
(Gladys Thayer:
pintora norte-americna)
Nota:
(*). Satguru: literalmente, o “verdadeiro mestre”.
Referência:
KABIR. Poema nº 76: Abre os olhos do
amor... In: KABIR. Cem poemas.
Seleção e tradução ao inglês de R. Tagore. Tradução, ensaios e notas de José
Tadeu Arantes. São Paulo: Attar, 2013.
Obs.: Não há, na obra acima, quaisquer
referências aos números de suas páginas, senão apenas a indexação dos poemas
aos números em colchetes, apostos imediatamente acima da tradução, assim como o
fazemos no topo desta postagem.
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Uma observação com respeito à paginação da obra de onde foram extraídos os poemas acima: verifiquei, com um certo atraso, que há numeração nas páginas do livro apenas nas partes que precede os poemas (até a página 26) e que os sucede (da página 131 até 135).
ResponderExcluirNesse sentido, podem-se obter as páginas onde inserto o aludido poema, a saber: Poema nº 76 - p. 104-105.
João A. Rodrigues