É bem possível, diria até quase certo, que Affonso Sant’Anna haja
escrito o poema, abaixo transcrito, à época em que o país esteve sob as trevas
da ditadura instituída pelo golpe militar de 1964 – diga o que disser o atual
presidente (sic) de Pindorama, o que, aliás, é quase nada, quando não for alguma
aleivosia ou manifestação explícita do mais infamante preconceito!
E há pouco passada a folia de Momo, lembrei-me da canção “Podres Poderes”,
do cantor e compositor Caetano Veloso, ainda na primeira metade dos anos 80,
cuja letra enfatiza com propriedade: “Enquanto os homens exercem os seu podres
poderes / índios e padres e bichas / negros e mulheres e adolescentes / fazem o
Carnaval”. E assim prossegue retrogradamente a vida neste cantão do terceiro
mundo!
J.A.R. – H.C.
Affonso Romano de Sant’Anna
(n. 1937)
De que riem os poderosos?
De que riem os
poderosos?
tão gordos e melosos?
tão cientes e
ociosos?
tão eternos e
onerosos?
Por que riem atrozes
como olímpicos
algozes,
enfiando em nossos
tímpanos
seus alaridos e
vozes?
De que ri o sinistro
ministro
com sua melosa
angústia
e gordurosa fala?
Por que tão eufemístico
exibe um riso
político
com seus números e
levíticos,
com recursos
estatísticos
fingindo gerar o
gênesis,
mas criando o
apocalipse?
Riem místicos? ou
terrenos
riem, com seus
mistérios gozosos,
esses que
fraudulentos
se assentam
flatulentos
em seus misteres
gasosos?
Riem sem dó? em dó
maior?
ou operísticos
gargalham
aos gritos como
gralhas
até ter dor no peito,
até dar nó nas tripas
em desrespeito?
Ah, como esse riso de
ogre
empesteia de enxofre
o desjejum do pobre.
Riem à tripa forra?
riem só com a boca?
riem sobre a magreza
dos súditos
famintos de realeza?
riem na entrada
e riem mais
– na sobremesa?
Mas se tanto riem
juntos
por que choram a sós,
convertendo o eu dos
outros
num cordão de trinta
nós?
O jantar: uma casal branco sendo servido
e abanado por escravos negros
Referência:
SANT’ANNA, Affonso Romano. De que riem
os poderosos? In: __________. A catedral
de Colônia e outros poemas. Rio de Janeiro, RJ: Rocco, 1985. p. 15-16.
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