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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 15 de março de 2020

Affonso Romano de Sant’Anna - De que riem os poderosos?

É bem possível, diria até quase certo, que Affonso Sant’Anna haja escrito o poema, abaixo transcrito, à época em que o país esteve sob as trevas da ditadura instituída pelo golpe militar de 1964 – diga o que disser o atual presidente (sic) de Pindorama, o que, aliás, é quase nada, quando não for alguma aleivosia ou manifestação explícita do mais infamante preconceito!

E há pouco passada a folia de Momo, lembrei-me da canção “Podres Poderes”, do cantor e compositor Caetano Veloso, ainda na primeira metade dos anos 80, cuja letra enfatiza com propriedade: “Enquanto os homens exercem os seu podres poderes / índios e padres e bichas / negros e mulheres e adolescentes / fazem o Carnaval”. E assim prossegue retrogradamente a vida neste cantão do terceiro mundo!

J.A.R. – H.C.

Affonso Romano de Sant’Anna
(n. 1937)

De que riem os poderosos?

De que riem os poderosos?
tão gordos e melosos?
tão cientes e ociosos?
tão eternos e onerosos?

Por que riem atrozes
como olímpicos algozes,
enfiando em nossos tímpanos
seus alaridos e vozes?

De que ri o sinistro ministro
com sua melosa angústia
e gordurosa fala?
Por que tão eufemístico
exibe um riso político
com seus números e levíticos,
com recursos estatísticos
fingindo gerar o gênesis,
mas criando o apocalipse?

Riem místicos? ou terrenos
riem, com seus mistérios gozosos,
esses que fraudulentos
se assentam flatulentos
em seus misteres gasosos?

Riem sem dó? em dó maior?
ou operísticos gargalham
aos gritos como gralhas
até ter dor no peito,
até dar nó nas tripas
em desrespeito?
Ah, como esse riso de ogre
empesteia de enxofre
o desjejum do pobre.

Riem à tripa forra?
riem só com a boca?
riem sobre a magreza dos súditos
famintos de realeza?
riem na entrada
e riem mais
– na sobremesa?

Mas se tanto riem juntos
por que choram a sós,
convertendo o eu dos outros
num cordão de trinta nós?

O jantar: uma casal branco sendo servido
e abanado por escravos negros
(Jean-Baptiste Debret: pintor francês)

Referência:

SANT’ANNA, Affonso Romano. De que riem os poderosos? In: __________. A catedral de Colônia e outros poemas. Rio de Janeiro, RJ: Rocco, 1985. p. 15-16.

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