É possível até que o poeta gaúcho estivesse a fazer referência às nossas
misérias mentais ou psicológicas, contudo prefiro interpretar o poema como uma
alusão à miséria de um país que tem (penso já em conjugar o verbo no pretérito
perfeito) tudo para dar certo, mas que não possui amor-próprio e abre mão a
preço aviltante, por meio de sua elite e classe política canalha (com raras
exceções), de um futuro que poderia ser bem distinto.
Intolerável é ver o quadro humano que, em pouco menos de meia década, se
transformou o país: um mar de gente nas ruas a mendigar alimentos ou valores, mais
de dez milhões de desempregados e um contingente ostensivo operando na
informalidade econômica. E tudo muito à deriva, sem qualquer sentido de
propósito – a hecatombe, em suma.
J.A.R. – H.C.
Carlos Nejar
(n. 1939)
Nossa é a miséria
Nossa é a miséria,
nossa é a inquietação
incalculável,
nossa é a ânsia de
mar e de naufrágios,
onde nossas raízes se
alimentam.
Em vão lutamos
contra os grandes
signos.
Seremos sempre
a mesma folhagem
de madrugada ausente.
O mesmo aceno
imperceptível
entre a janela e o
sonho.
A mesma lágrima
no mesmo rosto vazio.
A mesma frase
dentro dos mesmos
olhos
sob a fonte.
Seremos sempre
a mesma dor oculta
nas árvores, no
vento.
A mesma humilhação
diante da vida.
A mesma solidão
dentro da noite.
A mesma noite antiga
que separa
a semente do fruto
e amadurece
os lábios para a morte
como um rasto
de silêncio no mar.
Em: “Livro de Silbion” (1963)
(Cândido Portinaria:
pintor paulista)
Referência:
NEJAR, Carlos. Nossa é a miséria. In:
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Antologias
ABL: poesia / ABL’s Anthologies: poems. Idealização e apresentação de Ana
Maria Machado. Organização de Domício Proença Filho e Marco Lucchesi. Edição bilíngue. Rio de
Janeiro, RJ: ABL, 2013. p. 56 e 58.
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