Temos aqui outro poema dialogal, algo inusitado, desta feita entre marido – nomeado Afrânio – e a esposa: pretende o esposo suicidar-se e, para cada hipótese, formula contraditas, impugnações, réplicas, que, à primeira vista, mais não são do que pretextos pusilânimes para deixar de levar à frente tamanha empreitada contra a vida.
Mas ao final, tem-se a razão primordial para tantas idas e voltas, quando Afrânio esclarece à sua esposa a razão principal para haver rejeitado o recurso ao autoextermínio: viver – com todos os seus contratempos, inclemências e infortúnios –, por si só, já é um processo de mortificação gradual que nos levará, necessariamente, ao túmulo.
J.A.R. – H.C.
Mia Couto
(n. 1955)
Desilusão
Desiludido com o mundo,
Afrânio concluiu: “uns são filhos da puta,
outros só não o são
porque a mãe é estéril”
Decidido ao suicídio,
no alto da falésia hesitou:
“no mar não me lanço
que é demasiada sepultura.
Como receberei flores
entre tanto peixe faminto?”
Ante a fogueira, Afrânio desfez as contas:
“Na labareda, não.
Como me distinguiria,
depois, entre a cinza da lenha ardida?”
Quando na alta copa se pensou pendurar,
uma vez mais ele se avaliou.
E recordou o vizinho Salomão
que, de enforcado, se converteu em fruto,
seiva correndo na veia,
polpa viva a seduzir a passarada.
Afrânio regressou a casa,
resfregou as solas sobre os tapetes,
a esposa festejou o novo alento.
Engano seu, mulher, respondeu Afrânio.
Eu apenas escolhi outro suicídio.
A minha morte é este viver.
O silêncio do ruído
(Ghadah Alkandari: artista kuwaitiana)
Referência:
COUTO, Mia. Desilusão. In: __________. Poemas escolhidos. Seleção do autor. Apresentação de José Castello. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2016. p. 47-48.
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