O saber a que se refere Ivo é o que espreita o correlato verbete “sabedoria”,
muito próximo à vivência empírica, não racionalizada pelas palavras – “o vento
que sopra / a chuva que cai / e o amor” –, algo distante, portanto, daquele
saber veiculado pelo teor da ciência, derivado da pesquisa e do aprendizado
acadêmico.
Diz-nos o poeta que, assim como as formigas se escondem na ranhura das
pedras, os homens se escondem entre as palavras: isto porque o raciocínio
verbal, como se deduz, muitas vezes dissimula razões diversas daquelas
evidenciadas pelas situações fáticas, eis que engajado num discurso que não
busca consenso dialogal algum, senão o estabelecimento unilateral da cobiça de
quem o emite.
J.A.R. – H.C.
Lêdo Ivo
(1924-2012)
Ser e saber
Vi o vento soprar
e a noite descer.
Ouvi o grilo saltar
na grama estremecida.
Pisei a água
mais bela que a
terra.
Vi a flor abrir-se
como se abrem as
conchas.
O dia e a noite se
uniram
para ungir-me.
O enlace de luz e
sombra
cingiu os meus
sonhos.
Vi a formiga
esconder-se
na ranhura da pedra.
Assim se escondem os
homens
entre as palavras.
A beleza do mundo me
sustenta.
É o formoso pão
matinal
que a mão mais
humilde deposita
na mesa que separa.
Jamais serei um
estrangeiro.
Não temo nenhum
exílio.
Cada palavra minha
é uma pátria secreta.
Sou tudo o que é
partilha
o trovão a claridade
os lábios do mundo
todas as estrelas que
passam.
Só conheço a origem:
a água negra que
lambe a terra
e os goiamuns à
espreita
entre as raízes do
mangue.
Só sei o que não
aprendi:
o vento que sopra
a chuva que cai
e o amor.
A leiteira
(Johann Vermeer:
pintor holandês)
Referência:
IVO, Lêdo. Ser e saber. In: __________.
Crepúsculo civil. Rio de Janeiro,
RJ: Record, 1990. p. 14-15.
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