Seria capaz de entrever um particular interesse de Stevens em sublinhar
a unicidade das coisas, mesmo que, na aparência, possam elas se nos mostrar
distintas. Explico-me melhor: os versos propõem-se a sugerir uma espécie de
transcendência, encontrável em muitas das tradições orientais, segundo a qual
tudo o que constitui a realidade encerra a coexistência de elementos opostos.
O mundo é essa clareza e, para as mesmas manifestações concretas, outras
tantas, assim como determinado poeta – o plúrimo Fernando Pessoa – o descreve
com bastante precisão em seu poema “Nem sempre sou igual no que digo e
escrevo”, disponível neste endereço.
J.A.R. – H.C.
Wallace Stevens
(1879-1955)
Notes Toward a Supreme Fiction
It Must Change
IV
Two things of
opposite natures seem to depend
On one another, as a
man depends
On a woman, day on
night, the imagined
On the real. This is
the origin of change.
Winter and spring,
cold copulers, embrace
And forth the
particulars of rapture come.
Music falls on the
silence like a sense,
A passion that we
feel, not understand.
Morning and afternoon
are clasped together
And North and South
are an intrinsic couple
And sun and rain a
plural, like two lovers
That walk away as one
in the greenest body.
In solitude the
trumpets of solitude
Are not of another
solitude resounding;
A little string
speaks for a crowd of voices.
The partaker partakes
of that which changes him.
The child that
touches takes character from the thing,
The body, it touches.
The captain and his men
Are one and the
sailor and the sea are one.
Follow after, O my
companion, my fellow, my self,
Sister and solace,
brother and delight.
In: “Transport to Summer” (1947)
Almas Gêmeas Eternas
(Lee Bogle: pintor
norte-americano)
Apontamentos para uma Ficção Suprema
Deve Mudar
IV
Tudo depende do que
lhe é oposto.
Assim depende o homem
da mulher,
O dia da noite, o
imaginado
Do real. É esta a
origem das mudanças.
Inverno e primavera,
em fria cópula,
Engendram os
pormenores do enlevo.
Sobre o silêncio
desce a música, um sentido,
Paixão que só se
sente, não se entende.
Tarde e manhã se
abraçam, norte e sul
Formam um casal
intrínseco, e sol
E chuva um plural,
como dois amantes
Fundidos num só corpo
verdejante.
As trompas que na
solidão ressoam
Não são de alguma
outra solidão;
Uma só corda por
muitas vezes fala.
Quem interage muda ao
interagir.
A criança adquire o
caráter da coisa,
Do corpo, que toca. O
capitão e os marujos
São um só, e o marujo
e o mar são um.
Vem, companheiro,
minha irmã, meu eu,
Amigo e alívio,
alegria e irmão.
Em: “Transporte para o Verão” (1947)
Referência:
STEVENS, Wallace. Two things of
opposite natures seem to depend on one another / Tudo depende do que lhe é
oposto. Tradução de Paulo Henriques Britto. In: __________. Poemas. Seleção, tradução, apresentação
e notas de Paulo Henriques Britto. 1. ed. rev. e ampl. São Paulo, SP: Companhia
das Letras, 2017. Em inglês: p. 188 e 190; em português: p. 189 e 191.
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