De uma recolha toda ela, praticamente, dedicada à dor sentida por Lya ao
perder o companheiro, extraí este poema, a confidenciar certas coisas que se
passam na relação íntima entre cônjuges, acertos e desacertos, vestígios do
modo de ser de cada parceiro, jamais em sintonia completa com o “tipo ideal”
criado na mente do outro.
Confesso que, por certo zelo em possuir aquela que, sob o meu ponto de
vista, parecia a “melhor edição”, cheguei a comprar alguns títulos repetidos,
talvez não mais que quatro ou cinco em toda a vida – mas nunca em um só mês,
como no caso do companheiro da escritora gaúcha. Quanto a perder as coisas –
canetas, lapiseiras, borrachas, marcadores –, dele não difiro em nada: quem sabe
não seria uma particularidade dos homens?!
J.A.R. – H.C.
Lya Luft
(n. 1938)
O meu amado tinha tantas manias
o meu amado tinha
tantas manias:
perdia canetas,
lápis, chaves.
Houve um livro que
comprou três vezes em um mês:
depois encontramos
todos e mais um sob velhos jornais.
Mandei fazer uma
estante nova para organizar seus
livros:
mas quando ele se
foi, mais que livros havia ali de novo
jornais.
Nunca sabia bem por
que os guardara. Eram parte do
seu ninho,
como nossos lençóis e
os móveis da sala.
Não conseguia
sentar-se mais que meia hora para escrever:
vinha ao meu
escritório, usava de pretextos para me
distrair,
dava um beijo, fazia
confidências, comentava assuntos
do dia.
Quando me via triste,
dizia entre compassivo e magoado:
“Você hoje está numa
melancolia profunda?”
Certa vez discutimos,
e ele deixou sobre minha máquina
de escrever
um bilhete de amor.
Nunca tivemos mais
que vinte anos.
Na Biblioteca
(John Watkins Chapman:
pintor inglês)
Referência:
LUFT, Lya. O meu amado tinha tantas
manias. In: __________. O lado fatal.
5. ed. São Paulo, SP: Siciliano, 1993. p. 23.
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