Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 10 de novembro de 2019

Dora Ferreira da Silva - Carta a Ingmar Bergman

A exemplo do poema da quinta-feira passada (7.11.19), que aparece no blog um pouco mais abaixo, esta “carta” dirige-se a outro grande diretor do cinema – o sueco Ingmar Bergman –, muito embora, distintamente de Chaplin, as suas películas dedicam-se a atingir, com toda a seriedade possível, o âmago do espírito humano, como no caso de “Persona” (1966) ou “Gritos e Sussurros” (1972).

Ao ler o poema de Dora Ferreira, pude associar algumas de suas passagens aos filmes a que dizem respeito, v.g., uma das cenas de Natal, em “Fanny e Alexander” (1982); o jogo de xadrez entre um personagem e a morte, em “O Sétimo Selo” (1957); o diálogo, quase monólogo, entre as duas mulheres no precitado “Persona”, ou mesmo entre diversas mulheres, ou suas facetas características, em “Gritos e Sussurros”.

Não é supérflua a grafia com as iniciais maiúsculas redigidas pela poetisa nos vocábulos “Criança”, “Menino”, “Menina”, “Mulher”, “Morte”, pois o que Dora pretende sublinhar é exatamente o ciclo completo da vida, amplamente examinado pela prolífica obra do autor escandinavo.

De resto, ao acentuar o efeito capturado às películas – “mulheres fortes homens pusilânimes” –, a convolar-se nos derradeiros versos do poema – “o mundo renascerá sob o signo da Mulher e sua metamorfose” –, poder-se-ia deduzir alguma conexão com um trecho da famosa composição “Super-homem”, de Gilberto Gil: “Quem sabe o Super-homem venha nos restituir a glória / Mudando como um Deus o curso da História / Por causa da mulher”!

J.A.R. – H.C.

Dora Ferreira da Silva
(1918-2006)

Carta a Ingmar Bergman

Arrancaste todas as máscaras, teu rosto agora é verdadeiro;
lutaste com a morte a loucura desviaste de Deus
e humildemente deitaste raízes
num coração provisório.
A partir dele acionaste nervos e músculos de tantas personagens:
mulheres fortes homens pusilânimes
velhos velhas
a Criança!

Fui teus esgares a armadura o cilício os saltimbancos
a fonte e a donzela o sacrifício e a vingança.
Em ti joguei xadrez com um templário (a Morte)
conheci o jogo sensual e decepcionante do amor –
a criada bocejando os fantasmas o logro
a fé e a dúvida a igreja vazia o pastor perdido no deserto
o naufrágio o sacrilégio o mistério selado da redenção
as imagens do antes em seus tules e cetins
a floresta o machado a ira do pai a ilha o louco
o amor incestuoso dos irmãos no barco submerso
ente algas e bolhas do mar espumas sujas
o medo e suas ventosas puxando o Menino para baixo
da mesa
a face mecânica sacra do helicóptero para aquela que
esperava por Deus.

A esperança preservou-te (inútil por isso mandar-te um
bálsamo de folhas e raízes).
Tu a ergueste – a Menina – nos braços de Dionisos
(ó deus da passagem, não nos enganes!)
A Imagem disse: o mundo renascerá
sob o signo da Mulher e sua metamorfose.

Em: “Poemas em Fuga” (1997)

Ingmar Bergman
(1918-2007)

Referência:

FERREIRA DA SILVA, Dora. Carta a Ingmar Bergman. In: __________. Poesia reunida. Rio de Janeiro, RJ: Topbooks, 1999. p. 383-384.

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