A exemplo do poema da quinta-feira passada (7.11.19), que aparece no
blog um pouco mais abaixo, esta “carta” dirige-se a outro grande diretor do
cinema – o sueco Ingmar Bergman –, muito embora, distintamente de Chaplin, as
suas películas dedicam-se a atingir, com toda a seriedade possível, o âmago do
espírito humano, como no caso de “Persona” (1966) ou “Gritos e Sussurros”
(1972).
Ao ler o poema de Dora Ferreira, pude associar algumas de suas passagens
aos filmes a que dizem respeito, v.g., uma das cenas de Natal, em “Fanny e
Alexander” (1982); o jogo de xadrez entre um personagem e a morte, em “O Sétimo
Selo” (1957); o diálogo, quase monólogo, entre as duas mulheres no precitado “Persona”,
ou mesmo entre diversas mulheres, ou suas facetas características, em “Gritos e
Sussurros”.
Não é supérflua a grafia com as iniciais maiúsculas redigidas pela
poetisa nos vocábulos “Criança”, “Menino”, “Menina”, “Mulher”, “Morte”, pois o
que Dora pretende sublinhar é exatamente o ciclo completo da vida, amplamente examinado
pela prolífica obra do autor escandinavo.
De resto, ao acentuar o efeito capturado às películas – “mulheres fortes
homens pusilânimes” –, a convolar-se nos derradeiros versos do poema – “o mundo
renascerá sob o signo da Mulher e sua metamorfose” –, poder-se-ia deduzir
alguma conexão com um trecho da famosa composição “Super-homem”, de Gilberto
Gil: “Quem sabe o Super-homem venha nos restituir a glória / Mudando como um
Deus o curso da História / Por causa da mulher”!
J.A.R. – H.C.
Dora Ferreira da Silva
(1918-2006)
Carta a Ingmar Bergman
Arrancaste todas as
máscaras, teu rosto agora é verdadeiro;
lutaste com a morte a
loucura desviaste de Deus
e humildemente
deitaste raízes
num coração
provisório.
A partir dele
acionaste nervos e músculos de tantas personagens:
mulheres fortes
homens pusilânimes
velhos velhas
a Criança!
Fui teus esgares a
armadura o cilício os saltimbancos
a fonte e a donzela o
sacrifício e a vingança.
Em ti joguei xadrez
com um templário (a Morte)
conheci o jogo sensual
e decepcionante do amor –
a criada bocejando os
fantasmas o logro
a fé e a dúvida a
igreja vazia o pastor perdido no deserto
o naufrágio o
sacrilégio o mistério selado da redenção
as imagens do antes
em seus tules e cetins
a floresta o machado
a ira do pai a ilha o louco
o amor incestuoso dos
irmãos no barco submerso
ente algas e bolhas
do mar espumas sujas
o medo e suas
ventosas puxando o Menino para baixo
da mesa
a face mecânica sacra
do helicóptero para aquela que
esperava por Deus.
A esperança
preservou-te (inútil por isso mandar-te um
bálsamo de folhas e
raízes).
Tu a ergueste – a
Menina – nos braços de Dionisos
(ó deus da passagem,
não nos enganes!)
A Imagem disse: o
mundo renascerá
sob o signo da Mulher
e sua metamorfose.
Em: “Poemas em Fuga” (1997)
Ingmar Bergman
(1918-2007)
Referência:
FERREIRA DA SILVA, Dora. Carta a Ingmar
Bergman. In: __________. Poesia reunida.
Rio de Janeiro, RJ: Topbooks, 1999. p. 383-384.
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