Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 11 de agosto de 2019

Pablo Neruda - O Pai

Em homenagem ao Dia dos Pais, hoje a transcorrer, transcrevo um poema de Neruda, traduzido ao português pelo também poeta Carlos Nejar, no qual são reacesas pelo chileno as reminiscências de quando vivo era o seu pai, José del Carmen Reyes, um homem enrijecido pela lida da vida, um ferroviário a rumar em trens para destinos os mais variados, até que, em dado momento – metaforicamente, presume-se! – subiu numa locomotiva, rumo a paragem de onde ninguém jamais voltou.

As impressões de um homem a adentrar a casa como um tufão, depois de mais um dia de trabalho árduo, é o que assoma nos versos de Neruda. E o poeta arremata em síntese: “o ferroviário é marinheiro em terra e nos pequenos portos sem marinha”. Deduz-se, por conseguinte, que as tormentas, tão comuns nos mares, são replicadas em terra em lugares não suficientemente adaptados a suportá-las.

J.A.R. – H.C.

Pablo Neruda
(1904-1973)

El Padre

El padre brusco vuelve
de sus trenes:
reconocimos
en la noche
el pito
de la locomotora
perforando la lluvia
con un aullido errante,
un lamento nocturno,
y luego
la puerta que temblaba:
el viento en una ráfaga
entraba con mi padre
y entre las dos pisadas y presiones
la casa se sacudía,
las puertas asustadas
se golpeaban con seco
disparo de pistolas,
las escalas gemían
y una alta voz
recriminaba, hostil,
mientras la tempestuosa
sombra , la lluvia como catarata
despeñada en los techos
ahogaba poco a poco
el mundo
y no se oía nada más que el viento
peleando con la lluvia.

Sin embargo, era diurno.
Capitán de su tren, del alba fría,
y apenas despuntaba
el vago sol, allí estaba su barba,
sus banderas
verdes y rojas, listos los faroles
el carbón de la máquina en su infierno,
la Estación con los trenes en la bruma
y su deber hacia la geografía.

el ferroviario es marinero en tierra
y en los pequeños puertos sin marina
– pueblos del bosque – el tren corre que corre
desenfrenando la naturaleza,
cumpliendo su navegación terrestre.
Cuando descansa el largo tren
se juntan los amigos,
entran, se abren las puertas de mi infancia,
la mesa se sacude,
al golpe de una mano ferroviaria
chocan los gruesos vasos del hermano
y destella
el fulgor
de los ojos del vino.

Mi pobre padre duro
allí estaba, en el eje de la vida,
la viril amistad, la copa llena.
su vida fue una rápida milicia
y entre su madrugar y sus caminos,
entre llegar para salir corriendo,
un día con más lluvia que otros días
el conductor José del Carmen Reyes
subió al tren de la muerte y hasta ahora
no ha vuelto.

Pai e filho: primeiro passeio de bicicleta
(Vickie Wade: pintora norte-americana)

O Pai

O pai regressa brusco
de seus trens;
reconhecemos
na noite
o apito
da locomotiva
perfurando a chuva
com uivo errante,
um lamento noturno,
e logo
a porta que tremia:
numa rajada o vento
entrava com meu pai
e entre os dois passos e pressões
a casa
estremecia,
as portas assustadas
se golpeavam com seco
disparo de pistolas,
as escadas gemiam
e uma alta voz
recriminava, hostil,
enquanto a tempestuosa
sombra, a chuva como catarata
despenhada nos telhados
afogava pouco a pouco
o mundo
e não se ouvia nada mais que o vento
pelejando com a chuva.

E contudo, era diurno.
Capitão de seu trem, da aurora fria,
e apenas despontava
o vago sol, ali estava sua barba,
suas bandeiras
verdes e rubras, prontos os faróis,
o carvão da máquina em seu inferno,
a Estação com os trens na bruma
e seu dever para com a geografia.

O ferroviário é marinheiro em terra
e nos pequenos portos sem marinha
– vilas do bosque – o trem corre que corre
desenfreando a natureza,
cumprindo sua navegação terrestre.
Quando descansa o longo trem
se juntam os amigos,
entram, abrem-se as portas de minha infância,
a mesa estremece,
ao golpe de uma mão ferroviária
chocam-se os grossos copos do irmão
e cintila
o fulgor
dos olhos do vinho.

Meu pobre pai duro
ali estava, no eixo da vida,
a viril amizade, o copo cheio.
Sua vida foi uma rápida milícia
e entre seu madrugar e seus caminhos,
entre chegar para sair correndo,
um dia com mais chuva que outros dias
o condutor José del Carmen Reyes
subiu ao trem da morte e até agora não
voltou.

Referência:

NERUDA, Pablo. El padre / O Pai. Tradução de Carlos Nejar. In: __________. Memorial de Ilha Negra, v. I: Donde nasce a chuva. Tradução de Carlos Nejar. Rio de Janeiro, RJ: Salamandra, 1977. Em espanhol: p. 18 e 20; em português: p. 19 e 21.

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