A transitoriedade do mundo, sob a visão do poeta, reflete-se no ser que
ocupa um espaço que não é seu, senão do universo. E mesmo o seu mister é um
enfado – datilografar ofícios ou outros documentos numa máquina Remington –, ao
tempo que recebe impropérios cujos efeitos se dirigem ao inferno, como “se
inferno houvesse pior que este inumano existir burocrático”.
Deveríamos sublinhar, a bem dizer, que a atualização do poema para os
dias que correm deveria fazer menção a um ‘desktop’ ou a um ‘notebook’, pois
máquinas de datilografar há muito já se foram dos escritórios de Pindorama,
tendo sido jogadas a escanteio. Terá sido esse também o destino do poeta?
(rs)...
J.A.R. – H.C.
Nauro Machado
(1935-2015)
Ofício
Ocupo o espaço que
não é meu, mas do universo.
Espaço do tamanho do
meu corpo aqui,
enchendo inúteis
quilos de um metro e setenta
e dois centímetros, o
humano de quebra.
Vozes me dizem: eh,
tu aí! E me mandam bater
serviços de
excrementos em papéis caídos
numa máquina
Remington, ou outra qualquer.
E me mandam ao
inferno, se inferno houvesse
pior que este inumano
existir burocrático.
E depois há o
escárnio da minha província.
E a minha vida para
cima e para baixo,
para baixo sem cima,
ponte umbilical
partida, raiz viva de
morta inocência.
Estranhos uns aos
outros, que faço eu aqui?
E depois ninguém sabe
mesmo do espaço
que ocupo,
desnecessário espaço de pernas
e de braços preenchendo
o vazio que eu sou.
E o mundo, triste
bronze de um sino rachado
o mundo restará o
mesmo sem minha quota
de angústia e sem
minha parcela de nada.
O Burocrata
(Joe Slucher:
ilustrador norte-americano)
Referência:
MACHADO, Nauro. Ofício. In: __________.
Melhores poemas: Nauro Machado.
Seleção de Hildeberto Barbosa Filho. São Paulo, SP: Global, 2005. p. 79.
(Coleção “Melhores Poemas”; 50)
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