Incógnito é o ser a quem se dirige o ente lírico neste poema: ele não é
nomeado, mas talvez o poeta esteja a se referir a Deus ou a algum ente com o
dom de lançar linhas de força à volta dos homens, os quais, por sua vez, a ele
regressam, ao conhecê-lo no correr dos anos, depois de desvendar-lhe o labirinto,
ou presumivelmente nos umbrais da morte.
De fato, é uma viagem imaginária, para a qual não estão preparados todos
os seres humanos, alguns submersos no vício – a bebida e o cigarro –, navegando
pela escuridão da noite. Outros tantos já perceberam a região destinatária do “céu
fatal”, onde rebrilham as esperanças nas cercanias das portas do sol, à espera
da glória de uma manhã triunfante.
J.A.R. – H.C.
João-Francisco Ferreira
(n. 1925)
A Viagem
Tua face lacera a
biografia dos homens.
Não querem teu olhar
além das ressacas,
aspirando a fome
ébria dos pássaros...
Não levantam o braço
para que a vida seja outra.
Ficam silenciosos. E
quietos. Adormecem.
Não suportam a face
que é lágrima duradoura,
face sem máscara, fé
sem esperança.
Ninguém fala. Mas vê:
eles recuam,
secou-lhes a bebida,
a lógica, o fumo da conversa.
Sentem que és demais.
Temem-te o incêndio
irreprimível,
não querem tua face,
teu pranto,
tua visão de cárceres
derramados.
Abraçam-te na noite.
O ar das cordilheiras
toca as árvores.
É teu amigo que fala,
o que repete as
sílabas da noite, as pegadas do vento
e reduz para ti o
mundo.
Sua voz: a criança
que és encontrando-se a si mesma.
É a fabula, a luz do
remoto,
alguém ferido nas
rochas.
O amigo sabe teu
rosto,
tua canção, a viagem,
tua esperança às
portas do sol.
É o que estende a mão
como a própria vida.
O imemorial
adivinhando-te a febre,
teu ser que é um eco
às constelações imóveis.
O amigo é aquele que
para tua sede reinventa a mesma fonte;
o que penetra teu céu
fatal
e ressoa ao amor que
te fez pobre e impossível.
O que parte para
desvendar teu labirinto,
a glória de um dia
amanheceres.
Aconchego Distante
(Carrie Jacobson:
pintora norte-americana)
Referência:
FERREIRA, João-Francisco. A viagem. In:
CAMPOS, Milton de Godoy (Ed.). Antologia
poética da geração de 45. 1ª série. São Paulo, SP: Clube de Poesia, 1966.
p. 192-193.
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Meu professor.
ResponderExcluirMeu vizinho.
Meu amigo.
Grança figura