Hoje, dia dedicado aos idosos, nada melhor do
que um poema para retratar a condição: a mãe do poeta, já bem debilitada, fica à
mercê do que se passa na cabeça do filho, a promover pequenas “vinganças”, para
demonstrar que, no presente momento, é ele que detém o domínio das coisas – e
não a mãe, cuja força já quase se exauriu.
Hoagland oferece loas a essa inversão de
conjunturas, pois nela enxerga a possibilidade de devolver os anteriores
castigos com “luva de pelica”, levando à boca dos que o maltrataram o creme
adocicado que se mostra como metáfora do amor que agora retribui, em réplica às
repreensões que, talvez, não lhe tenham sido atenuadas da memória.
J.A.R. – H.C.
Tony Hoagland
(n. 1953)
Lucky
If you are lucky in this life,
you will get to help your enemy
the way I got to help my mother
when she was weakened past the point of saying
no.
Into the big enamel tub
half-filled with water
which I had made just right,
I lowered the childish skeleton
she had become.
Her eyelids fluttered as I soaped and rinsed
her belly and her chest,
the sorry ruin of her flanks
and the frayed gray cloud
between her legs.
Some nights, sitting by her bed
book open in my lap
while I listened to the air
move thickly in and out of her dark lungs,
my mind filled up with praise
as lush as music,
amazed at the symmetry and luck
that would offer me the chance to pay
my heavy debt of punishment and love
with love and punishment.
And once I held her dripping wet
in the uncomfortable air
between the wheelchair and the tub,
until she begged me like a child
to stop,
an act of cruelty which we both understood
was the ancient irresistible rejoicing
of power over weakness.
If you are lucky in this life,
you will get to raise the spoon
of pristine (*), frosty ice cream
to the trusting creature mouth
of your old enemy
because the tastebuds at least are not broken
because there is a bond between you
and sweet is sweet in any language.
Mãe e criança na cozinha
(Laura Knight: pintora
inglesa)
Afortunado
Se contares com a sorte nesta vida
terás a oportunidade de ajudar o teu inimigo,
da mesma forma como ajudei minha mãe,
quando de tão débil sequer podia dizer não.
Na grande banheira esmaltada
cheia de água pela metade
que havia preparado com esmero,
imergi o infantil esqueleto
em que ela se convertera.
Suas pálpebras fremiram enquanto lhe ensaboava
e enxaguava o ventre e o peito,
a lamentável ruína de seus flancos
e a desenleada nuvem cinza
entre as pernas.
Algumas noites, sentado junto à sua cama
com um livro aberto em meu colo,
enquanto escutava o ar
mover-se densamente para dentro e para fora
de seus escuros pulmões,
minha mente encheu-se de gratidão,
tão abundante quanto música,
maravilhado com a simetria e a sorte,
que me ofereciam a chance de pagar
minha pesada dívida de castigo e amor
com amor e castigo.
E uma vez a sustentei toda molhada
em meio ao ar desconfortável
entre a cadeira de rodas e a banheira,
até que implorou como uma criança
para parar,
um ato de crueldade que entendemos ser
o antigo e irresistível regozijo do poder
sobre a debilidade.
Se contares com a sorte nesta vida,
terás a chance de levantar a colher
de chantili, de sorvete gelado
até a confiante boca da criatura
de teu velho inimigo,
porque as papilas gustativas, pelo menos,
não estarão gastas,
porque ainda há um vínculo entre vocês
e o doce é doce em qualquer idioma.
Nota:
(*) Parece-me que o poeta emprega a palavra
“pristine” não em seu sentido literal – prístino –, mas como menção à renomada
marca de produtos para bolos, cremes e coberturas. Daí a adaptação empregada na
versão ao português – chantili –, para tornar a ideia inteligível ao leitor do
bloguinho.
Referência:
HOAGLAND, Tony. Lucky. In: ELLISON, Koshin
Paley; WEINGAST, Matt (Eds.). Awake at the bedside: contemplative
teachings on palliative and end-of-life care. Somerville, MA: Wisdom
Publications, 2016. p. 69-70.
❁
Nenhum comentário:
Postar um comentário