Num tom de reminiscência dantesca – afinal, as imagens fazem lembrar as descrições de Alighieri do inferno, com nuvens, espumas, éter, vapores ou que tais –, Montale revela neste poema todo o seu antagonismo entre as perspectivas transcendente e contingente que lhe vão na alma.
Quem não gostaria de saber o que sucede com os mortos no outro plano de existência – se é que, de fato, este existe?! As visões de Dante não procuram teorizar sobre a dúvida, senão falar ao espírito do modo mais ocular possível, o que, em última instância, torna menos árduo o trabalho de pintores e gravuristas como Doré. Por igual, as palavras de Montale estão plasmadas por impressões cênicas, mantendo-se em linha, todavia, com os efeitos menos beatíficos da obra de seu conterrâneo.
J.A.R. – H.C.I Morti
Il mare che si frange sull’opposta
riva vi leva un nembo che spumeggia
finché la piana lo riassorbe. Quivi
gettammo un dì su la ferrigna costa,
ansante più del pelago la nostra
speranza! – e il gorgo sterile verdeggia
come ai dì che ci videro fra i vivi.
Or che aquilone spiana il groppo torbido
delle salse correnti e le rivolge
d’onde trassero, attorno alcuno appende
ai rami cedui reti dilunganti
sul viale che discende
oltre lo sguardo;
reti stinte che asciuga il tocco tardo
e freddo della luce; e sopra queste
denso il cristallo dell’azzurro palpebra
e precipita a un arco d’orizzonte
flagellato.
Più d’alga che trascini
il ribollio che a noi si scopre, muove
tale sosta la nostra vita: turbina
quanto in noi rassegnato a’ suoi confini
risté un giorno; tra i fili che congiungono
un ramo all’altro si dibatte il cuore
come la gallinella
di mare che s’insacca tra le maglie;
e immobili e vaganti ci ritiene
una fissità gelida.
Così
forse anche ai morti è tolto ogni riposo
nelle zolle: una forza indi li tragge
spietata più del vivere, ed attorno,
larve rimorse dai ricordi umani,
li volge fino a queste spiagge, fiati
senza materia o voce
traditi dalla tenebra; ed i mozzi
loro voli ci sfiorano pur ora
da noi divisi appena e nel cervello
Os Mortos
O amor que contra a
margem arrebenta
levanta um nimbo ao
alto que espumeja
até que o plaino o
ressorve. Aí um dia
arremessamos na
ferrenha costa,
a nossa mais anelante
que o pélago
esperança! – e
estéril o abismo verdeja
como em tempo que nos
viu entre os vivos.
Agora que o aquilão aplaina
o túrbido
nó das salsas
correntes e as devolve
lá de onde afluíram,
em torno pendem
aos ramos talhados
redes esticadas
na rua que desce
para além da vista;
redes sem cor que
enxuga o arrefecido
toque tardio da luz;
e no alto
denso o cristal
pestaneja
e desaba num arco de
horizonte
flagelado.
Mais do que alga que
arraste
o rebojo a nós
manifesto, mova
nossa vida essa
pausa: turbilhona
quanto em nós
resignado a seus confins
parou um dia; entre
os fios que juntam
os ramos se debate o
coração
assim como um galo
do mar agonizante
entre as malhas;
e imóveis a divagar
nos retém
uma fixidez gélida.
Assim talvez
mesmo aos mortos se
lhes tire o descanso
nas leivas: uma força
daí os traz
mais ímpia que o
viver, e de envolta,
larvas aflitas da
memória humana,
os torna em ronda a
essas praias, sopros
sem matéria ou voz
traídos pelas trevas;
e esbaforidos
seus voos nos
esfloram ainda agora,
de nós mal separados
e no crivo
MONTALE, Eugenio. I morti / Os mortos.
Tradução de Renato Xavier. In: __________. Ossos
de sépia. Tradução, prefácio e notas de Renato Xavier. São Paulo, SP:
Companhia das Letras, jan. 2002. Em italiano: p. 186; em português: p. 187.
(Coleção “Prêmio Nobel”)
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