Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 7 de outubro de 2018

Mário Dionísio - Arte Poética

Nas palavras de um dos teóricos e doutrinadores mais relevantes do social-realismo em Portugal, esta representação da “Ars Poetica” propõe-se avizinhar o objeto da poesia às paragens da realidade concreta, em clara oposição às comuníssimas tergiversações dos poetas, suscitadas pelas pretensas influências das musas em suas criações.

Diria, então, que se o poeta lusitano houvesse dito que a poesia não poderia trair a realidade em que está imerso o comum dos homens, despertar-me-ia assombro a proximidade dessa ideia com certo pronunciamento de um outro poeta, o brasileiro Ferreira Gullar, a acoplar em elevada correlação as palavras “poesia” e “história”, levando-me a deduzir que este último, muito provavelmente, deixou-se influenciar pelas proposições de Dionísio. Veja-se a transcrição abaixo:

E a história humana não se desenrola apenas nos campos de batalha e nos gabinetes presidenciais. Ela se desenrola também nos quintais, entre plantas e galinhas, nas ruas de subúrbios, nas casas de jogo, nos prostíbulos, nos colégios, nas ruínas, nos namoros de esquina. Disso quis eu fazer a minha poesia, dessa matéria humilde e humilhada, dessa vida obscura e injustiçada, porque o canto não pode ser uma traição à vida, e só é justo cantar se o nosso canto arrasta consigo as pessoas e as coisas que não têm voz.

(In: GULLAR, Ferreira. Corpo a corpo com a linguagem. Ponta Grossa, PR: UEPG; Museu/Arquivo da Poesia Manuscrita, 1997. p. 5)

J.A.R. – H.C.

Mário Dionísio
(1916-1993)

Arte Poética

A poesia não está nas olheiras imorais de Ofélia
nem no jardim dos lilases.
A poesia está na vida,
nas artérias imensas cheias de gente em todos os sentidos,
nos ascensores constantes,
na bicha de automóveis rápidos de todos os feitios e de
todas as cores,
nas máquinas da fábrica e nos operários da fábrica
e no fumo da fábrica.
A poesia está no grito do rapaz apregoando jornais,
no vaivém de milhões de pessoas conversando ou
praguejando ou rindo.
Está no riso da loira da tabacaria,
vendendo um maço de tabaco e uma caixa de fósforos.
Está nos pulmões de aço cortando o espaço e o mar.
A poesia está na doca,
nos braços negros dos carregadores de carvão,
no beijo que se trocou no minuto entre o trabalho e o jantar
– e só durou esse minuto.
A poesia está em tudo quanto vive, em todo o movimento,
nas rodas do comboio a caminho, a caminho, a caminho
de terras sempre mais longe,
nas mãos sem luvas que se estendem para seios sem véus,
na angústia da vida.
A poesia está na luta dos homens,
está nos olhos abertos para amanhã.

Em: “Poemas” (1941)

No meio das coisas
(Ali Banisadr: artista iraniano)

Referência:

DIONÍSIO, Mário. Arte poética. In: __________. Novo cancioneiro. Prefácio, Organização e notas de Alexandre Pinheiro Torres. Lisboa, PT: Editorial Caminho, 1989. p. 148-149.

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