Nas palavras de um dos teóricos e doutrinadores mais relevantes do
social-realismo em Portugal, esta representação da “Ars Poetica” propõe-se avizinhar
o objeto da poesia às paragens da realidade concreta, em clara oposição às
comuníssimas tergiversações dos poetas, suscitadas pelas pretensas influências
das musas em suas criações.
Diria, então, que se o poeta lusitano houvesse dito que a poesia não
poderia trair a realidade em que está imerso o comum dos homens, despertar-me-ia
assombro a proximidade dessa ideia com certo pronunciamento de um outro poeta,
o brasileiro Ferreira Gullar, a acoplar em elevada correlação as palavras “poesia”
e “história”, levando-me a deduzir que este último, muito provavelmente,
deixou-se influenciar pelas proposições de Dionísio. Veja-se a transcrição abaixo:
E a história humana não se desenrola
apenas nos campos de batalha e nos gabinetes presidenciais. Ela se desenrola
também nos quintais, entre plantas e galinhas, nas ruas de subúrbios, nas casas
de jogo, nos prostíbulos, nos colégios, nas ruínas, nos namoros de esquina.
Disso quis eu fazer a minha poesia, dessa matéria humilde e humilhada, dessa
vida obscura e injustiçada, porque o canto não pode ser uma traição à vida, e
só é justo cantar se o nosso canto arrasta consigo as pessoas e as coisas que
não têm voz.
(In: GULLAR, Ferreira. Corpo a corpo
com a linguagem. Ponta Grossa, PR: UEPG; Museu/Arquivo da Poesia Manuscrita,
1997. p. 5)
J.A.R. – H.C.
Mário Dionísio
(1916-1993)
Arte Poética
A poesia não está nas
olheiras imorais de Ofélia
nem no jardim dos
lilases.
A poesia está na
vida,
nas artérias imensas
cheias de gente em todos os sentidos,
nos ascensores
constantes,
na bicha de
automóveis rápidos de todos os feitios e de
todas as cores,
nas máquinas da
fábrica e nos operários da fábrica
e no fumo da fábrica.
A poesia está no
grito do rapaz apregoando jornais,
no vaivém de milhões
de pessoas conversando ou
praguejando ou rindo.
Está no riso da loira
da tabacaria,
vendendo um maço de
tabaco e uma caixa de fósforos.
Está nos pulmões de
aço cortando o espaço e o mar.
A poesia está na
doca,
nos braços negros dos
carregadores de carvão,
no beijo que se
trocou no minuto entre o trabalho e o jantar
– e só durou esse
minuto.
A poesia está em tudo
quanto vive, em todo o movimento,
nas rodas do comboio
a caminho, a caminho, a caminho
de terras sempre mais
longe,
nas mãos sem luvas
que se estendem para seios sem véus,
na angústia da vida.
A poesia está na luta
dos homens,
está nos olhos
abertos para amanhã.
Em: “Poemas” (1941)
No meio das coisas
(Ali Banisadr:
artista iraniano)
Referência:
DIONÍSIO, Mário. Arte poética. In:
__________. Novo cancioneiro. Prefácio,
Organização e notas de Alexandre Pinheiro Torres. Lisboa, PT: Editorial
Caminho, 1989. p. 148-149.
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