Aparentemente, Júdice metaforiza neste poema a
situação da arte poética nas últimas décadas, quando se tornou uma forma de
prazer estético – como bem o diria? – meio lateral, com poucos aficionados
leitores, embora ainda com muitos “produtores”, esses poetas visionários que
agregam atributos restauradores ali onde a realidade exibe a aridez capaz de
levar ao tédio.
Mas pouco importa se a “demanda” por poesia
esteja fadada a mirrar-se: tanto pior para quem não a conhece ou a desmerece,
pois não usufruirá do poder de integração que ela comporta, permitindo-nos mais
acerto em nossas valorações, mais precisão em nossos sentimentos e emoções
devotados a apreciar o belo.
J.A.R. – H.C.
Nuno Júdice
(n. 1949)
A Penosa Descoberta
“Poética”, disse ele,
pousando o copo.
Posso não acreditar em
nada, nem seguir
o barulho regular dos
relógios, continuou
no mesmo tom de voz: a
minha vida
aproxima-se do ideal
poético superior.
Abriu a janela e recebeu
na cara os ventos
do norte. Nada o
impedia, agora,
do encontro com a
solidão irremediável.
Pousou a bebida no
parapeito, agarrou
com a mão direita um
ramo de árvore e,
com a mão esquerda
fechada no ar, disse
em voz alta: “Poética”,
para que todos
ouvissem. No entanto, ao
dar-se conta
de que estava só, em
plena madrugada,
fechou a janela, fechou
o livro que começara
a ler, na véspera,
fechou a luz
– e à claridade baça e
fria do inverno
sentou-se no chão de
madeira, a pensar,
como se não houvesse
mais ninguém
naquele mundo.
Em: “O Mecanismo
Romântico
da Fragmentação” (1975)
O poeta à janela
(Tommie Olofsson: pintor
sueco)
Referência:
JÚDICE, Nuno. A penosa descoberta. In:
__________. Por dentro do fruto a chuva: antologia poética.
Seleção, organização e prefácio de Vera Lúcia de Oliveira. São Paulo, SP:
Escrituras, 2004. p. 31. (Coleção “Ponte Velha”)
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