Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

José Bento - Eu tradutor, traidor

Bento, poeta e tradutor lusitano, diz-se um traidor a cada ensejo que verte ao português poemas de outras línguas – como o espanhol –, vezes sem conta tomados em seu mister de organização de antologias capazes de abarcar o melhor da lírica em alguns países, como a da contígua Espanha.

Parece-lhe que anda a profanar santuários, maculando-os com a petulância pecaminosa de suas transposições. De fato, prefiro ver em Bento um exímio tradutor, do que propriamente um traidor das mensagens, dos sentimentos, dos “aromas” contidos em versos alheios. Porque traduzir também é criar (ou recriar) a mensagem original, trazendo-a à feição e aos modos como, no idioma destinatário, ela melhor se adaptaria às convenções e às experiências de quem há de desfrutá-la.

Sobre o mesmo tema, o internauta poderá apreciar outra poesia, de autoria do romeno Marin Sorescu, intitulada exatamente “Tradução”, em tom bem gracioso, para mostrar o quanto é difícil a tarefa de se obter equivalência cultural entre as formas de expressão próprias de cada idioma. O estilo, as conotações, a expressividade, a modulação, a musicalidade, a métrica, a rima, tudo contribui para que, em algum momento, algo deixará de exibir fidelidade ao original. Importa, então, reduzir as “traições” a meros pecados veniais! (rs)

J.A.R. – H.C.

José Bento
(n. 1932)

Eu tradutor, traidor

A Pilar Gómez Bedate e Ángel Crespo

Não me dói o que de mim perdi.
Busco, não o encontro, mas recolho
sua exalação, não mais
que a memória alumiando
quanto já não regressa:
fogo hibernal que se mantém do frio.

Relanceio o que toquei não sendo meu:
palavras,
cicatrizes indefesas
numa boca, num lugar, numa data.
Amei-as sem lucidez.
  Profanação?
A quem prestarei contas?
  Muitos
reivindicam o que é seu, e transmutei
sem consciência, com avidez tão cega
que não soube transmitir sua inteireza,
ufano ao supor reter seu fundo aroma.

Dissipei tanto fulgor alheio
ao querer dá-lo qual se me pertencesse,
sem o remorso e a vergonha
de o oferecer como se não o tivesse magoado.

Fogo Invernal
(Leonid Afremov: pintor israelense)

Referência:

BENTO, José. Eu tradutor, traidor. In: __________. Silabário. Lisboa, PT: Relógio d’Água, 1992. p. 98.

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