Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Gabriela Mistral - Uma Palavra

Por ter uma palavra enleada em seu desenredo, a poetisa chilena evita seguir lançando-a aos quatro cantos da terra, até que, por fim, aqui ou alhures, não siga mais viva – livrando-se, desse modo, dos infortúnios que lhe batem à porta, fazendo-a caminhar sem alma entre os pares.

Mistral desestima a contingência de que a palavra que lhe sai da boca alce voos assemelhados aos da alma, motivo porque sugere enterrá-la com argamassa e cal, para que não venha a queimar o pasto ou a provocar danos de maior relevo. Caro leitor: tal juízo não tangenciaria certo desencanto experimentado por pessoas de idade já mais avançada, ante o sofrimento e o luto?!

J.A.R. – H.C.

Gabriela Mistral
(1889-1957)

Una Palabra

Yo tengo una palabra en la garganta
y no la suelto, y no me libro de ella
aunque me empuja su empellón de sangre.
Si la soltase, quema el pasto vivo,
sangra al cordero, hace caer al pájaro.

Tengo que desprenderla de mi lengua,
hallar un agujero de castores
o sepultarla con cal y mortero
porque no guarde como el alma el vuelo.

No quiero dar señales de que vivo
mientras que por mi sangre vaya y venga
y suba y baje por mi loco aliento.
Aunque mi padre Job la dijo, ardiendo,
no quiero darle, no, mi pobre boca
porque no ruede y la hallen las mujeres
que van al río, y se enrede a sus trenzas
o al pobre matorral tuerza y abrase.

Yo quiero echarle violentas semillas
que en una noche la cubran y ahoguen,
sin dejar de ella el cisco de una sílaba.
O rompérmela así, como la víbora
que por mitad se parte entre los dientes.

Y volver a mi casa, entrar, dormirme,
cortada de ella, rebanada de ella,
y despertar después de dos mil días
recién nacida de sueño y olvido.

Sin saber ¡ay! que tuve una palabra
de yodo y piedra-alumbre entre los labios
ni poder acordarme de una noche,
de la morada en país extranjero,
de la celada y el rayo a la puerta
y de mi carne marchando sin su alma.

Castor
(Sara Tyson: ilustradora canadense)

Uma Palavra

Eu tenho uma palavra na garganta
e não a solto, não me livro dela,
apesar de seu ímpeto de sangue.
Se eu a solto, ela queima o pasto vivo,
sangra o cordeiro, faz cair o pássaro.

De minha língua devo desprendê-la,
encontrar-lhe uma toca de castores,
ou sepultá-la com argamassa e cal,
para não alçar voos como a alma.

Eu não quero dar mostras de estar viva,
enquanto ela em meu sangue vai e vem
e sobe e desce por meu louco alento.
Embora Jó, fremente, a tenha dito,
não quer dizê-la minha pobre boca,
a fim de que não role e não se enrede
nas tranças das mulheres que a encontrem,
e a fim de que não torça ou queime o mato.

Quero lançar-lhe sólidas sementes
que, numa noite, vão cobri-la toda,
sem deixar dela o cisco de uma sílaba.
Ou então vou quebrá-la, como a víbora
que se parte em metades entre os dentes.

E voltar a meu lar, entrar, dormir,
já destacada e separada dela,
e despertar depois de dois mil dias,
renascida de sono e esquecimento.

Sem saber – ai! – que tive uma palavra
de iodo e pedra-ume entre meus lábios,
e sem poder lembrar-me de uma noite,
de um país estrangeiro e de uma casa,
e da cilada e do infortúnio à porta,
e de meu corpo a caminhar sem alma.

Referência:

MISTRAL, Gabriela. Una palabra / Uma Palavra. Tradução de Ruth Sylvia de Miranda Salles. In: MISTRAL, Gabriela; MEIRELES, Cecília. Poemas. Ensaios de Cecília Meireles e Adriana Valdés. Poemas traduzidos por Ruth Sylvia de Miranda Salles (Esp.-Port.) e Patricia Tejeda (Port.-Esp.). Rio de Janeiro, RJ: Academia Brasileira de Letras; Santiago, CL: Academia Chilena de la Lengua, 2003. Em espanhol: p. 92 e 94; em português: p. 93 e 95.

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