Tudo são símbolos neste poema de Ramos, das flores do ipê e da papoula à
serpente – que, pelo momento, ainda não instila o seu veneno, ela que
representa os estados transgressivos, hetéricos ou sacrílegos, digamos assim –,
e de quem devemos nos afastar, para que possamos nos manter puros no ocaso,
quando então as sombras do espírito se fundirão às das folhagens e às da noite.
Tal é a permanência possível, no correr da jornada, a nos fazer arder o
desejo e a esperança que, mas à frente, os sonhos derramem em pétalas, antes
que se materializem no horizonte – metáfora dimensional a nos alertar de que a
fortuna de tudo quanto existe é a finitude.
J.A.R. – H.C.
Pérciles Eugênio da Silva Ramos
(1919-1992)
Teoria da Permanência
A tarde, resplendor
de pêssegos maduros,
atira, céu abaixo, as
suas redes de ouro,
e, éguas sagradas
agitando crinas brancas,
relincham na montanha
as cataratas:
calada, ó profetisa
de olhos doces,
deixa cair sobre teu
rosto a flor do ipê,
e sente nessa tarde
concentrada
o dia que se esvai e
roça a tua pele
como que a oferecer-te
o augúrio de teu fim.
Ou colhe, se
preferes, a papoula em chamas,
e vê como esse fogo
de esperança
é ao mesmo passo,
aquém dos horizontes,
o próprio sono
transformado em pétalas.
Não, não esmagues a
teus pés a cascavel,
nem sofras que o
terror te empalideça
quando escutares os
seus crótalos fatais:
a hora não chegou,
ela não morderá;
mas não a enfrentes,
nem confundas esse guizo
com o ébrio craquejar
das castanholas,
nem com o tinir dos
outros guizos
de qualquer rei Momo:
a taça está repleta,
não a vires,
nem queiras temerária
provocar os fados.
Os dias já contados,
não conjures
os elementos contra a
luz que te rodeia:
colhe a papoula em
chamas ou a flor do ipê,
contempla a tarde
como esplende
igual a um fruto
diáfano de mel.
Ipê ou tarde, faze a
tua vida
brilhar intensamente
como o sol:
depois, que a tua luz
se apague;
há de ficar ao menos
a lembrança de um clarão
em tua sombra que se
fundirá
na sombra das
folhagens e da noite.
Em: “Lua de Ontem” (1960)
Paris à noite
(Charles C. Curran:
pintor norte-americano)
Referência:
RAMOS, Péricles Eugênio da Silva.
Teoria da permanência. In: __________. Poesia
quase completa. Rio de Janeiro, GB: Livraria José Olympio Editora, 1972. p.
118-119.
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