Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 23 de abril de 2018

Jorge Luis Borges - Xadrez ‎

Somente tendo muito lido, como Borges, se poderia chegar ao estado de se elaborar linhas concentradas e absorventes a denotar todo um mundo de pensamentos e sentimentos que já fluiu pelo “mar da história”, como neste caso, em que o poeta argentino nos remete ao milenar jogo de xadrez, sugerindo-nos que ascende à infinidade da escala do espaço e do tempo a cadeia na qual se assenta a asserção do “livre arbítrio”, ao nos inquirir sobre o deus que está por trás de Deus, a manifestar o dom de engendrar o ardil “de pó e tempo e sonho e agonias?”.

Borges menciona “Omar” e penso que se refira ao persa Omar Khayyam que, no “Rubaiyat”, algumas vezes reporta-se à trama do xadrez nesse incerto e imbricado viver, como na passagem a seguir:

Versão ao inglês de Edward Fitzgerald (XLIX)
(KHAYYAM, 1901, p. 22)

’Tis all a Chequer-board of Nights and Days
Where Destiny with Men for Pieces plays:
Hither and thither moves, and mates, and slays,
And one by one back in the Closet lays.

Tudo é um tabuleiro de xadrez de noites e dias
No qual o destino joga com peças humanas:
Move-as daqui para ali e lhes dá xeque-mate,
E, uma a uma, guarda-as de novo no armário.

Versão ao inglês de E. H. Whinfield (270)
(KHAYYAM, 1901, p. 208)

We are but chessmen, destined, it is plain,
That great chess-player, Heaven, to entertain;
It moves us on life’s chess-board to and fro,
And then in death’s dark box shuts up again.

Não somos mais do que peças de xadrez, é claro,
Fadadas a entreter esse grande enxadrista, o Eterno;
A mover-nos no tabuleiro da vida de um lado a outro,
Após o que nos encerra de novo no escuro nicho da morte.

Prefiro pensar nas peças do jogo como a refletir a própria conjugação da pugna social, com alguns a deter o poder – então representados por reis e damas –, outros que, em algum momento da história, viveram ou vivem à volta do poder – como os bispos –, e a grande maioria infausta na base da pirâmide – os peões. Torres e cavalos seriam os recursos, animados ou inanimados, de que lança mão cada qual, nesse árduo embate que é a vida. Tudo tão simples assim, embora nada semelhante ao próprio jogo de xadrez!

J.A.R. – H.C.

Jorge Luis Borges
(1899-1986)

Ajedrez

I

En su grave rincón, los jugadores
rigen las lentas piezas. El tablero
los demora hasta el alba en su severo
ámbito en que se odian dos colores.

Adentro irradian mágicos rigores
las formas: torre homérica, ligero
caballo, armada reina, rey postrero,
oblicuo alfil y peones agresores.

Cuando los jugadores se hayan ido,
cuando el tiempo los haya consumido,
ciertamente no habrá cesado el rito.

En el Oriente se encendió esta guerra
cuyo anfiteatro es hoy toda la Tierra.
Como el otro, este juego es infinito.

II

Tenue rey, sesgo alfil, encarnizada
reina, torre directa y peón ladino
sobre lo negro y blanco del camino
buscan y libran su batalla armada.

No saben que la mano señalada
del jugador gobierna su destino,
no saben que un rigor adamantino
sujeta su albedrío y su jornada.

También el jugador es prisionero
(la sentencia es de Omar) de otro tablero
de negras noches y de blancos días.

Dios mueve al jugador, y éste, la pieza.
¿Qué Dios detrás de Dios la trama empieza
de polvo y tiempo y sueño y agonía?

En: “El hacedor” (1960)

Uma Partida de Xadrez
(George Goodwin Kilburne: pintor inglês)

Xadrez

I

Em seu austero canto, os jogadores
regem as lentas peças. O tabuleiro
prende-os até a alva no severo
espaço em que se odeiam duas cores.

Dentro irradiam mágicos rigores
as formas: torre homérica, ligeiro
cavalo, armada rainha, rei postreiro,
oblíquo bispo e peões agressores.

Quando os jogadores tiverem ido,
quando o tempo os tiver consumido,
certamente não terá cessado o rito.

No oriente acendeu-se essa guerra
cujo anfiteatro é hoje toda a Terra.
Como o outro, esse jogo é infinito.

II

Tênue rei, oblíquo bispo, encarniçada
rainha, peão ladino e torre a prumo
sobre o preto e o branco de seu rumo
buscam e travam sua batalha armada.

Não sabem que a mão assinalada
do jogador governa seu destino,
não sabem que um rigor adamantino
sujeita seu arbítrio e sua jornada.

Também o jogador é prisioneiro
(a máxima é de Omar) de um tabuleiro
de negras noites e de brancos dias.

Deus move o jogador, e este, a peça.
Que deus detrás de Deus o ardil começa
de pó e tempo e sonho e agonias?

Em: “O fazedor” (1960)

Referências:

BORGES, Jorge Luis. Ajedrez / Xadrez. Tradução de Josely Vianna Baptista. In: __________. Nova antologia pessoal. Traduções de Davi Arrigucci Jr., Heloisa Jahn e Josely Vianna Baptista. Edição bilíngue. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2013. Em espanhol: p. 283-284; em português: p. 19-20.

KHAYYAM, Omar. The sufistic quatrains of Omar Khayyam. Translations of Edward Fitzgerald, E. H. Whinfield and J. B. Nicolas: persian x english. General introduction by Robert Arnot. New York (US); London (EN): Oxford Press, 1901. (‘Universal Classics Library’; M. Walter Dunne Publisher; vol. I)

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