Somente tendo muito lido, como Borges, se poderia chegar ao estado de se
elaborar linhas concentradas e absorventes a denotar todo um mundo de
pensamentos e sentimentos que já fluiu pelo “mar da história”, como neste caso,
em que o poeta argentino nos remete ao milenar jogo de xadrez, sugerindo-nos
que ascende à infinidade da escala do espaço e do tempo a cadeia na qual se
assenta a asserção do “livre arbítrio”, ao nos inquirir sobre o deus que está
por trás de Deus, a manifestar o dom de engendrar o ardil “de pó e tempo e
sonho e agonias?”.
Borges menciona “Omar” e penso que se refira ao persa Omar Khayyam que,
no “Rubaiyat”, algumas vezes reporta-se à trama do xadrez nesse incerto e imbricado
viver, como na passagem a seguir:
Versão ao inglês de
Edward Fitzgerald (XLIX)
(KHAYYAM, 1901, p. 22)
’Tis all a Chequer-board of Nights and
Days
Where Destiny with Men for Pieces
plays:
Hither and thither moves, and mates,
and slays,
And one by one back in the Closet lays.
Tudo é um tabuleiro de xadrez de noites
e dias
No qual o destino joga com peças
humanas:
Move-as daqui para ali e lhes dá
xeque-mate,
E, uma a uma, guarda-as de novo no
armário.
Versão ao inglês de
E. H. Whinfield (270)
(KHAYYAM, 1901, p. 208)
We are but chessmen, destined, it is
plain,
That great chess-player, Heaven, to
entertain;
It moves us on life’s chess-board to
and fro,
And then in death’s dark box shuts up
again.
Não somos mais do que peças de xadrez, é
claro,
Fadadas a entreter esse grande enxadrista,
o Eterno;
A mover-nos no tabuleiro da vida de um
lado a outro,
Após o que nos encerra de novo no
escuro nicho da morte.
Prefiro pensar nas peças do jogo como a refletir a própria conjugação da
pugna social, com alguns a deter o poder – então representados por reis e damas
–, outros que, em algum momento da história, viveram ou vivem à volta do poder –
como os bispos –, e a grande maioria infausta na base da pirâmide – os peões.
Torres e cavalos seriam os recursos, animados ou inanimados, de que lança mão
cada qual, nesse árduo embate que é a vida. Tudo tão simples assim, embora nada
semelhante ao próprio jogo de xadrez!
J.A.R. – H.C.
Jorge Luis Borges
(1899-1986)
Ajedrez
I
En su grave rincón,
los jugadores
rigen las lentas
piezas. El tablero
los demora hasta el
alba en su severo
ámbito en que se
odian dos colores.
Adentro irradian
mágicos rigores
las formas: torre
homérica, ligero
caballo, armada
reina, rey postrero,
oblicuo alfil y
peones agresores.
Cuando los jugadores
se hayan ido,
cuando el tiempo los
haya consumido,
ciertamente no habrá
cesado el rito.
En el Oriente se
encendió esta guerra
cuyo anfiteatro es
hoy toda la Tierra.
Como el otro, este
juego es infinito.
II
Tenue rey, sesgo
alfil, encarnizada
reina, torre directa
y peón ladino
sobre lo negro y
blanco del camino
buscan y libran su
batalla armada.
No saben que la mano
señalada
del jugador gobierna
su destino,
no saben que un rigor
adamantino
sujeta su albedrío y
su jornada.
También el jugador es
prisionero
(la sentencia es de
Omar) de otro tablero
de negras noches y de
blancos días.
Dios mueve al jugador,
y éste, la pieza.
¿Qué Dios detrás de
Dios la trama empieza
de polvo y tiempo y
sueño y agonía?
En: “El hacedor” (1960)
Uma Partida de Xadrez
(George Goodwin
Kilburne: pintor inglês)
Xadrez
I
Em seu austero canto,
os jogadores
regem as lentas
peças. O tabuleiro
prende-os até a alva
no severo
espaço em que se
odeiam duas cores.
Dentro irradiam
mágicos rigores
as formas: torre
homérica, ligeiro
cavalo, armada
rainha, rei postreiro,
oblíquo bispo e peões
agressores.
Quando os jogadores
tiverem ido,
quando o tempo os
tiver consumido,
certamente não terá
cessado o rito.
No oriente acendeu-se
essa guerra
cujo anfiteatro é
hoje toda a Terra.
Como o outro, esse
jogo é infinito.
II
Tênue rei, oblíquo
bispo, encarniçada
rainha, peão ladino e
torre a prumo
sobre o preto e o
branco de seu rumo
buscam e travam sua
batalha armada.
Não sabem que a mão
assinalada
do jogador governa
seu destino,
não sabem que um
rigor adamantino
sujeita seu arbítrio
e sua jornada.
Também o jogador é
prisioneiro
(a máxima é de Omar)
de um tabuleiro
de negras noites e de
brancos dias.
Deus move o jogador,
e este, a peça.
Que deus detrás de Deus
o ardil começa
de pó e tempo e sonho
e agonias?
Em: “O fazedor” (1960)
Referências:
BORGES, Jorge Luis. Ajedrez / Xadrez.
Tradução de Josely Vianna Baptista. In: __________. Nova antologia pessoal. Traduções de Davi Arrigucci Jr., Heloisa
Jahn e Josely Vianna Baptista. Edição bilíngue. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia
das Letras, 2013. Em espanhol: p. 283-284; em português: p. 19-20.
KHAYYAM, Omar. The sufistic quatrains of Omar Khayyam. Translations of Edward
Fitzgerald, E. H. Whinfield and J. B. Nicolas: persian x english. General introduction by Robert
Arnot. New York (US); London (EN): Oxford Press, 1901. (‘Universal Classics Library’;
M. Walter Dunne Publisher; vol. I)
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