Ao descrever a natureza caótica de uma paisagem, mais propriamente de
uma baía costeira a ser dragada, Bishop emprega simbólica perturbadora,
aparentemente para associá-la à ideia de morte, haja vista que o entorno se
mostra corrompido e pútrido.
Há certo efeito aliterativo no original, como que a reproduzir o barulho
que a cena produz, em meio ao qual sobressai o ritmo sincopado da draga, com
ressonância baudelairiana no espírito da poetisa. Presentes, ainda, estão alguns
botes amontoados, “como envelopes abertos de cartas não respondidas”. Nesse
contexto, seria válida a interpretação do poema enquanto metáfora do próprio
quotidiano de Bishop, no qual toda a “atividade confusa continua, medonha, mas
animada”?!...
J.A.R. – H.C.
Elizabeth Bishop
(1911-1979)
The Bight
[On my birthday]
At low tide like this
how sheer the water is.
White, crumbling ribs
of marl protrude and glare
and the boats are
dry, the pilings dry as matches.
Absorbing, rather
than being absorbed,
the water in the
bight doesn’t wet anything,
the color of the gas
flame turned as low as possible.
One can smell it
turning to gas; if one were Baudelaire
one could probably
hear it turning to marimba music.
The little ocher
dredge at work off the end of the dock
already plays the dry
perfectly off-beat claves.
The birds are
outsize. Pelicans crash
into this peculiar
gas unnecessarily hard,
it seems to me, like
pickaxes,
rarely coming up with
anything to show for it,
and going off with
humorous elbowings.
Black-and-white
man-of-war birds soar
on impalpable drafts
and open their tails
like scissors on the curves
or tense them like
wishbones, till they tremble.
The frowsy sponge
boats keep coming in
with the obliging air
of retrievers,
bristling with
jackstraw gaffs and hooks
and decorated with
bobbles of sponges.
There is a fence of
chicken wire along the dock
where, glinting like
little plowshares,
the blue-gray shark
tails are hung up to dry
for the
Chinese-restaurant trade.
Some of the little
white boats are still piled up
against each other,
or lie on their sides, stove in,
and not yet salvaged,
if they ever will be, from the last
bad storm,
like torn-open,
unanswered letters.
The bight is littered
with old correspondences.
Click. Click. Goes
the dredge,
and brings up a
dripping jawful of marl.
All the untidy
activity continues,
awful but cheerful.
In: “A Cold Spring” (1955)
Draga Escura
(Ken Karlic: pintor
norte-americano)
A Baía
[No dia do meu aniversário]
Agora na vazante, a
água é cristalina.
Frágeis costelas de
alva marga brilham ao sol
e os barcos e os
pilares estão secos como fósforos.
Mais absorvente que
absorvida,
a água da baía não
molha nada,
cor de chama de gás
aberta ao mínimo.
Dá pra senti-la
transformar-se em gás; Baudelaire
provavelmente a
ouviria virar um solo de marimba.
A draga amarela
operando na ponta do cais
já toca notas secas,
perfeitamente sincopadas.
As aves são enormes.
Os pelicanos chocam-se
contra esse gás
estranho com uma força excessiva,
me parece, como se
fossem picaretas,
e quase nunca emergem
com algo nos bicos,
e vão embora se
acotovelando; é cômico.
Gaivotas preto e
branco levitam
em correntezas
impalpáveis
e abrem as caudas nas
curvas qual tesouras
ou as retesam,
trêmulas, como ossos da sorte.
Barquinhos
desleixados vêm chegando
com um ar prestativo
de cães de caça,
pega-varetas de
vergas e ganchos
enfeitados com as
esponjas pescadas.
No cais, penduradas
numa cerca de tela de arame,
reluzentes como
arados em miniatura,
caudas de tubarões
secam ao sol –
serão vendidas aos
restaurantes chineses.
Alguns barquinhos
brancos ainda estão amontoados
um contra o outro, ou
deitados de lado, esmagados,
aguardando conserto
desde a última tormenta,
como envelopes abertos
de cartas não respondidas.
A baía está coberta
de correspondência antiga.
Taque. Taque. É a
draga,
trazendo à tona uma
bocada de marga a respingar.
A atividade confusa
continua,
medonha, mas animada.
Em: “Uma Primavera Fria” (1955)
Referência:
BISHOP, Elizabeth. The bight / A baía.
Tradução de Paulo Henriques Britto. In: __________. Poemas escolhidos de Elizabeth Bishop. Seleção, tradução e textos
introdutórios de Paulo Henriques Britto. Edição bilíngue. 1. ed. São Paulo, SP:
Companhia das Letras, 2012. Em inglês: p. 174 e 176; em português: p. 175 e
177.
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